Machado de Assis mantém uma relação íntima com Santo Agostinho, e talvez Memórias Póstumas de Brás Cubas seja a obra do cânone literário brasileiro que mais dialoga com Confissões.
A pseudobiografia de Brás Cubas encontra em Agostinho de Hipona diversos paralelos estilísticos e biográficos que merecem ser destacados.
Tanto Confissões quanto Memórias Póstumas de Brás Cubas apresentam uma narrativa em primeira pessoa que explora a vida interior de seus protagonistas, intercalando reflexões filosóficas — especialmente sobre a natureza humana — ao longo desse mergulho introspectivo.
Ambos os autores refletem de maneira franca sobre suas próprias falhas morais, admitindo suas baixezas, mediocridades e pecados.
Os protagonistas também compartilham uma vida amorosa conturbada na juventude. No caso de Brás Cubas, Marcela assume um papel equivalente ao da concubina de Agostinho.
À medida que amadurecem e se distanciam de suas respectivas amantes, tanto o personagem machadiano quanto Agostinho confrontam a necessidade (e a conveniência) do casamento.
Santo Agostinho é bastante direto ao afirmar:
“Tenho uma multidão de amigos poderosos. Sem me apressar muito, poderia obter, no mínimo, uma presidência; poderia então casar-me com uma mulher de alguma fortuna, para que meus gastos não fossem muito pesados.”
Mais adiante, Agostinho confessa que o casamento seria uma solução para sua consciência, já que lhe parecia impossível viver sem sexo.
Em Memórias Póstumas, é o pai de Brás Cubas quem, após semanas de luto pela morte da esposa, aborda o filho com duas propostas: “um lugar de deputado e um casamento”. No entanto, Brás se vê dividido: “uma parte de mim dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição política eram bem dignas de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das coisas, das afeições, da família…”
Percebe-se que Brás Cubas e seu pai lidam com a questão de modo semelhante ao dilema de Santo Agostinho. Além disso, ambos os autores iniciam suas obras confessando delitos, déficits morais e fracassos, cada um com suas motivações particulares.
A principal diferença entre eles reside no desfecho dessas reflexões: enquanto Agostinho busca a purificação redentora por meio da conversão, Brás Cubas, cínico e irônico, conforma-se com a galhofa e a melancolia de sua condição.
Agostinho voltou suas intenções para o alto, enquanto Brás Cubas foi arrematado por Virgilia em uma relação tão bela quanto reprovável.
No entanto, não há em Brás Cubas uma afronta ao princípio da redenção em si — algo típico de Machado de Assis, que nunca negou as verdades dos púlpitos e dos altares.
Sua ironia era uma espada afiada voltada contra as máscaras da virtude, e não contra as virtudes em si.
É possível afirmar que Brás Cubas era um niilista, mas não um apologista do niilismo. Ele escreve que não teve filhos para não “transmitir o legado da nossa miséria”, mas, no Capítulo XC — O Velho Colóquio de Adão e Caim —, revela a alegria que sentia ao imaginar-se pai:
“Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem.”
O mesmo autor que, em um ímpeto de melancolia, considera a geração de filhos como a multiplicação da miséria é aquele que, em vida, afirmava sentir-se completo com um “ser tirado do seu ser”.
Essa ambiguidade é central para compreender Brás Cubas e, por extensão, Machado de Assis. O autor se altera, se equivoca e se corrige constantemente. Não por ser inverossímil, mas por ser franco — tão franco quanto um autor morto pode ser.
Ele não planeja suas palavras, assim como não planeja seus pensamentos. Em vários momentos, começa um capítulo e, no meio, desiste, assumindo outra ideia de repente para falar de um assunto que, naquele instante, lhe parece mais oportuno — não sem antes avisar o leitor e os possíveis críticos de sua mudança de rumo.
Uma coisa, porém, permanece constante: uma estima pelas coisas eternas e o desalento de não pertencer a elas. Uma piedade sem zelo, um cristão que repetidamente falta à missa dominical e assume a preguiça e o desinteresse, sem dar desculpas.
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MACHADO DE ASSIS: HUMOR E IRONIA NAS ALUSÕES ÀS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO