O que torna o folclore e as histórias de fantasmas japonesas tão interessantes?
Essa é uma das principais perguntas que Patrick Lafcádio Hearn, um jornalista grego, tentou responder ao viajar para o Japão durante a década de 1890.
Ele se tornou professor de literatura inglesa na Universidade Imperial de Tóquio e logo se viu totalmente enfeitiçado pelo país. Casou-se com uma japonesa, filha de um samurai, se naturalizou japonês sob o nome de Koizumi Yakumo e adotou o budismo como religião.
O magnetismo das histórias folclóricas do extremo oriente exerceram em Patrick uma fascinação tão grande que o mesmo resolveu adotar uma cidania japonesa e mudar seu nome.
No fim do século XIX o Japão era ainda um país desconhecido e exótico para o mundo ocidental.
Patrick, ou melhor, Koizumi Yakumo, ficou conhecido pelas suas coleções de contos míticos e seus estudos sobre as superstições do povo japonês. Japanese Fairy Tales (1898), In Ghostly Japan (1899) e Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things (1903) são obras que refletem uma vida inteira dedicada a desvendar aquilo que é mais ancestral de um povo (de qualquer povo): suas histórias de horror.
Alguns dos seus contos e estudos foram transformados em 1964 num enigmático filme experimental chamado “Kwaidan, as 4 faces do medo”, do diretor Masaki Kobayashi.
Kwaidan é uma antologia de 4 pequenas histórias de fantasmas: “O Cabelo Preto”, “A Mulher na Neve”, “Hoichi, o sem ouvidos” e “Em uma xícara de chá”.
Em “O Cabelo Preto”, um espadachim (Mikuni Rentarō) abandona sua amada, mas empobrecida esposa (Aratama Michiyo) por uma mais rica e de maior posição social (Watanabe Misako). Dominado pelo remorso, ele finalmente volta para descobrir que as coisas mudaram em sua ausência. Enquanto “A Mulher da Neve” apresenta um lenhador (Tatsuya Nakadai) que, preso em uma nevasca, encontra-se nas garras de um espírito predador (Kishi Keiko). Inesperadamente, ela se compadece e poupa sua vida, com a condição de que pelo resto de seus dias ele mantenha calado sobre o que aconteceu.
Ambos os contos chegam em cerca de quarenta minutos e são amarrados por um fio-condutor um temático: mulheres maltratdas evocam espíritos vingativos que aparecem como jovens pálidas com cabelos pretos. Esse perfil têm sido a principal figura de representação gótica do paranormal na arte japonesa. Do teatro kabuki, a era de ouro do teatro japonês no século XVII, até a virada do milênio, na onda do J-horror.
“Hoichi, o sem ouvidos” , centra-se em um jovem monge cego (Nakamura Katsuo) habilidoso na arte do biwa hoshi – uma forma de música folclórica tradicional executada no biwa, um instrumento semelhante ao alaúde de quatro cordas. Sua interpretação de uma música que narra uma antiga batalha travada entre dois clãs é tão excepcional que o torna a obsessão da corte e do séquito fantasmagórico. Esta é a história mais longa, com mais de uma hora, e é seguida pela mais curta, com trinta minutos. Uma espécie de como um conto dentro de um conto, “In a Cup of Tea” combina um fragmento inacabado sobre um atendente atormentado por um fantasma nascido de uma xícara de chá.
O filme é quase inteiramente feito em estúdio e filmado em cores no Tohoscope, um sistema de lentes anamórficas desenvolvido no final da década de 1950 pela Toho Studios.Kwaidan extrai sua qualidade misteriosa através de suas condições e estilo abertamente artificiais.
O diretor Kobayashi Masaki opta por uma encenação livre e simétrica, juntamente com estilos de atuação não realistas, onde expressões e dicção são exageradamente apontadas ou desaceleradas para dar ênfase.
A inspiração é claramente a decoração esparsa e a quietude do teatro Noh, cuja arte não é medida pela semelhança com a vida real. Em vez disso, é uma arte de máscaras e símbolos cujo poder é derivado da execução especializada de gestos e movimentos específicos.
Kobayashi projeta uma cinematografia que reafirma o sentido espiritual do cinema. Uma panóplia de tomadas e panorâmicas lentas, juntamente com tomadas de ângulos altos que, em vez de colocar o público em pé de igualdade com os mortos e condenados, os distancia.
O design de som serve ao mesmo propósito, com pouca ambiência natural e os poucos, seletos sons encharcados de reverberação como se estivessem gravados em uma caverna vazia. O compositor Takemitsu Toru então acentua essa paisagem sonora abertamente determinada, adaptando as texturas atonais e o minimalismo do biwa hoshi a composições ainda mais esparsas. Absolutamente tudo nesse filme se assemelha a uma experiência religiosa.
Esses elementos formais, e como são aplicados com rigor, evocam e sustentam um ar quase implacavelmente tenso e pesado. Os movimentos de câmera muitas vezes vão do estável e medido para o denivelado e vagueante. Não estamos diante de uma distorção mental, esse vício ocidental de achar que tudo se explica piscológicamente, mas uma simulada experiência de contato com o sobrenatural.
O alto nível de controle formal de Kwaidan tem como pano de fundo uma sensação de espetáculo exuberante e lúgubre. Um raro exemplo de choque e confluência da estética surrealista e tradicional sendo executada em grande escala.
Essa mistura de forma ostensiva e altos valores de produção é a maior conquista do filme e é melhor apreciada observando seu lugar na história do cinema japonês. É uma produção descompromissada, independente, lançada durante os anos de decadência da configuração da indústria cinematográfica como um sistema de estúdios, o que fez com que a grande maioria da produção cinematográfica nacional fosse consolidada sob a égide de um punhado de grandes estúdios.
Operando com uma rigidez que era uma faca de dois gumes, por um lado, esse sistema oferecia um poço quase sem fundo de recursos e instalações, permitindo que muitos cineastas trabalhassem consistentemente em alto nível de disciplina técnica.
Kwaidan reflete e reforça o magnetismo da tradição folclórica japonesa através do cinema e nos ajuda a entender um pouco o que encantou tanto Koizumi Yakum







