Dionísio: Aparecimentos e Desaparecimentos

Licurgo atacando a Ninfa Ambrosia, mosaico de Herculano (50-79 dC)

Imagem: Licurgo atacando a Ninfa Ambrosia, mosaico de Herculano (50-79 dC)

Iniciemos do começo: Zeus, o soberano do Olimpo, encantou-se pela beleza de Sêmele, princesa mortal de Tebas, filha do rei Cadmo e da deusa Harmonia. Para se aproximar da jovem, o senhor dos deuses assumiu a forma de um belo jovem mortal. Nas visitas secretas que lhe fazia, Sêmele engravidou, sem saber que concebera um filho divino.

Hera, protetora do matrimônio e eternamente traída por Zeus, descobriu mais uma infidelidade do marido. Consumida, mais uma vez, pelo ciúme, arquitetou uma vingança ardiola contra sua rival: transformando-se em uma anciã, aproximou-se de Sêmele e, com palavras habilidosas, convenceu a princesa a duvidar da natureza de seu amante.

Influenciada por Hera, Sêmele exigiu que Zeus jurasse pelo sagrado rio Estige que atenderia a qualquer pedido seu. Quando o deus concordou, a princesa pediu para vê-lo em sua verdadeira forma. Embora relutante, Zeus foi obrigado a cumprir o juramento, pois nem ele poderia violar as regras ocultas deste rio.

Ao se revelar em todo seu esplendor divino – envolto em raios e trovões –, o fulgor de sua glória tornou-se insuportável para a frágil mortal. Sêmele foi consumida pelas chamas do seu amante divino.

Porém, no momento final, Zeus interveio. Com um gesto rápido, resgatou o feto do ventre da princesa moribunda e o costurou em sua própria coxa, a fim de completar ali mesmo a gestação.

Dionísio veio a nascer com o epíteto de “o deus nascido duas vezes”; isso significa que apareceu, desapareceu e viria a aparecer novamente.

Nascido de uma mortal, Dionísio não tinha direito a um lugar entre os olímpicos; contudo, após superar diversas provas, logrou tornar-se aceito como o único semi-deus do Olimpo. Além disso, obteve também o ingresso de Sêmele, sua mãe, que ele foi buscar no submundo, tornando-a, inclusive, uma deusa sob o novo nome de Thyone, que presidiria o frenesi inspirado por seu filho. Sêmele é um dos raros, e talvez único, caso de uma mortal que foi retirada do submundo, ressuscitada e promovida à natureza divina.

Na Ilíada de Homero, Dionísio é mencionado brevemente num episódio célebre envolvendo o herói trácio Licurgo, durante uma disputa entre Diomedes e Glauco no Canto VI (versos 130-140).

Licurgo era um rei da Trácia (ou, em outras versões, da Edônia) que se opôs ao culto de Dionísio em suas terras. Na Ilíada, ele ataca as nutrizes do deus (as ninfas ou Mênades) e persegue o próprio Dionísio, que foge e se refugia no mar com a ninfa Tétis, uma das cinquenta nereidas filhas do antigo deus marinho – a qual Homero se refere como “a deusa dos pés prateados”.

Essa perseguição causa ira nos deuses, e Licurgo é punido. Homero não detalha sua punição, mas outras versões do mito (como em Eurípides e nos hinos órficos) relatam que Licurgo foi cegado por Zeus ou devorado por cavalos selvagens.

A imagem de Dionísio fugindo e se escondendo no mar é curiosa, pois contrasta com sua representação posterior como um deus poderoso. Isso pode refletir uma fase pré-consolidação de seu culto, onde ele ainda era visto como uma divindade vulnerável.

Mircea Eliade, no primeiro volume de seu livro A História das Crenças e das Ideias Religiosas, lembra que o “mergulho nas águas” remete a um antigo argumento iniciático. Podemos dizer que este mergulho pode ser comparado a um batismo, onde Dionísio é explicitamente reconhecido como membro da família divina, pois não só Zeus, seu pai, como todos os outros deuses, se sentiram lesados pelo ato de Licurgo e tomaram parte de sua defesa.

Há outros padrões que podemos perceber nessa história, como a de um deus ou santo sendo perseguido por um rei, que se completa na estranha figura do deus que foge, que se esconde e que se oculta, para depois se revelar.

Walter Otto, como bem cita Eliade, compreendeu perfeitamente a solidariedade entre o tema da “perseguição” de Dionísio e a tipologia de suas múltiplas epifanias. Dionísio é um deus que aparece de supetão, para desaparecer em seguida de maneira misteriosa. Nas agriônias de Queroneia, as mulheres procuravam-no debalde e voltavam com a notícia de que o deus fora para junto das musas, que o haviam ocultado. Ele desaparece mergulhando no fundo do lago de Lerna, ou no mar, e reaparece – como nas antestérias – numa embarcação sobre as ondas.

As alternâncias entre “aparecimento” e “desaparecimento”, que também podem ser consideradas o próprio ciclo da vida, caracterizado pela constante experiência do nascimento e da morte, fazem jus às ideias das estações, como mencionei brevemente em meu artigo “O Apolo não apolíneo”, na parte em que falo da alternância entre o aparecimento de Dionísio e o desaparecimento de Apolo (e vice-versa).

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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