Mircea Eliade, em seu livro História das Crenças e das Ideias Religiosas, fala algo muito interessante sobre Apolo. Ele diz ser paradoxal que o deus tido como a mais perfeita encarnação do gênio helênico não tenha uma etimologia grega e também que seus mais célebres feitos míticos não testemunham virtudes que acabaram por ser chamadas de “apolíneas”: a serenidade, o respeito à lei e à ordem, a divina harmonia.
Isso obviamente não é aleatório. Segundo o Hino Homérico 132, quando Apolo nasceu ele gritou “Deem-me a lira e meu arco curvo; anunciarei aos homens a inflexível vontade de Zeus”. Nas Eumênides de Ésquilo, ele assegura às Fúrias “que nunca proferiu um oráculo sobre homem, mulher ou cidade, que nõ fosse ordem de Zeus”. Essa veneração pelo “pai dos olímpicos” explica a fama de Apolo com as ideias de lei e ordem. No entanto, Apolo, muitas vezes, deixou-se dominar pela vingança, pela inveja e até pelo rancor.
Apolo é filho da titânida Leto com Zeus. A irmã dele é Ártemis. Sua narrativa antes do nascimento segue a clássica narrativa sagrada do “recém-nascido perseguido”. Sua mãe deu à luz enquanto se escondia na ilha de Delfos, por temor a Hera, que havia incitado Píton, o dragão de Delfos, a ir-lhe no encalço.
Desde o seu nascimento, a existência de Apolo foi envolvida em turbulências e morte. Um dos primeiros feitos de Apolo, ainda quando criança, foi punir Píton.
A vitória do deus-paladino contra o dragão é símbolo da “autoctonia” e da soberania primordial das potências telúricas. Até aí, temos nada menos do que a preservação de uma narrativa simbólica consagrada.
No entanto, Apolo também vitimou outras pessoas e entidades fora desse padrão.
Apolo chacinou os sete filhos de Níobe (enquanto Ártemis liquidava as sete filhas), pois a orgulhosa mãe havia humilhado Leto, gabando-se de sua numerosa prole.
Ele também matou a sua bem-amada Corônis, que o havia enganado com um mortal.
Esta última história se desenrola em eventos muito interessantes.
Corônis estava grávida, e Apolo salvou a criança que ela ia dar à luz, Asclépio. Este último tornou-se um famoso médico, a tal ponto que, instado por Ártemis, ressuscitou Hipólito. Esse milagre contrariava as leis fixadas por Zeus, e o rei dos deuses fulminou Asclépio. Como vingança, Apolo massacrou os ciclopes que tinham forjado o Raio. Culpado de insurreição, Apolo foi condenado a passar um ano entre os mortais, trabalhando como escravo de Admeto.
Se não bastasse, de forma criminosa cômica, Apolo também matou seu amigo predileto, Jacinto, por descuido – o menos “apolíneo” dos motivos. É mole?
Curiosamente, essa mitologia agressiva e, às vezes, atrapalhada, era bem conhecida e documentada na época, através da literatura e das artes plásticas.
Eu mencionei que, além de tudo, Apolo não tem uma etimologia grega.
Sua origem tem sido procurada nas regiões setentrionais da Eurásia, ou na Ásia Menor.
A primeira hipótese, mais europeia, baseia-se sobretudo nas relações dele com os “hiperbóreos”, que os gregos consideravam habitantes de uma terra “para além de Bóreas”, ou seja, para além do vento do Norte (fato engraçado: os nacional-socialistas não ironicamente achavam que os arianos descendiam dessa raça).
Sua história célebre em Delfos, aqui mencionada, esconde, além da narrativa mitológica da purificação, também um processo de substituição, pois Píton era o deus mais cultuado dessa região.
A substituição de Píton por Apolo foi a consolidação da sua soberania mitológica, religiosa e política.
Esse mito ganhou ornamentos narrativos interessantes. Segundo o mito délfico (a mais antiga referência, que se encontra num poema de Alceuu, por volta de 600 a.C., resumido tardiamente por Himério), Zeus tinha decidido que Apolo se estabeleceria em Delfos para levar a lei aos helenos, ou seja, ele seria o emissário da ordem (não seu promulgador).
Apolo, jovem e rebelde (como ninguém suspeitaria para um “apolíneo”), foi aos ares, sobre um carro puxado por cisnes, até a terra dos hiperbóreos, onde permaneceu por todo um ano. Os hiperbóreos eram uma raça santa, imune à doença e à velhice. Sua terra se assemelhava à ilha dos Bem-Aventurados. Eles não conheciam os combates, os trabalhos, a escala 6×1 e ficavam o tempo todo tocando liras e flautas. Apolo adorava esse lugar!
No entanto, sua estadia entre os hiperbóreos se tornava intermitente. Os habitantes de Delfos não paravam de invocá-lo com cantos e danças.
Devido a isso, os habitantes de Delfos e Apolo chegaram a um acordo: ele passava os três meses do inverno entre os hiperbóreos e regressava no verão para estar presente nas celebrações (quem diz que Apolo não curte “dionisiacamente” uma festa está errado), estabelecendo então o calendário festivo da região.
Durante a ausência de Apolo, era Dionísio quem reinava em Delfos. Essa teria sido a origem dessa antagonização, mas, perceba, Dionísio curiosamente aparecia em épocas não-festivas.
A segunda hipótese, mais asiática, se mescla com a primeira e talvez esta tenha emprestado os traços da reconhecida rigidez marmórea de sua postura – talvez influenciadas por características chinesas longíquas (a China tinha uma influência tão gigantesca quanto silenciosa).
Em suma, o deus grego Apolo pode não ser tão grego nem tão apolíneo quanto você pensa.
A característica identificada como “apolínea” foi mal entendida e mal difundida nos tempos modernos e especialmente cristalizada por Nietzsche, que foi moldado numa perspectiva caricata de perfectibilidade protestante, que antagonizava o vinho e o dever (lembrando que Nietzsche pensou em seguir a carreira de pastor quando adolescente; o fato de ele ter se voltado contra isso não o abona do fato de estar ligado a um certo viés).