A genialidade do Auto da Compadecida

“O homem que não graceja nunca, que não aceita as brincadeiras e não incentiva o lado lúidco ou relaxante de outrem é um bronco, e tem um alto custo para o próximo”

São Tomás de Aquino

O Auto da Compadecida é um dos filmes brasileiros mais queridos de todos os tempos. Para muitos, incluindo eu, a melhor produção cinematográfica nacional já feita.

No entanto, pouca gente sabe que o filme é apenas um recorte da minissérie de mesmo nome lançada em 1999 – escrita por Guel Arraes (que também é diretor), Adriana Falcão e João Falcão.

A minissérie foi produzida pela Rede Globo e exibida de 5 de janeiro a 8 de janeiro de 1999, totalizando 4 capítulos.

Sinopse

A história se passa no vilarejo de Taperoá, sertão da Paraíba, na década de 1930.

Começamos acompanhando João Grilo (interpretado por Matheus Nachtergaele) e seu amigo Chicó (interpretado por Selton Mello), dois nordestinos vadios que se valem da astúcia e do companheirismo para sobreviverem a fome.

João Grilo, apesar de não ser letrado, é um sujeito muito inteligente – mestre na arte da burla e do convencimento. Em suma, um sujeito esperto e, como é dito na obra, a esperteza é a arma do pobre. Chicó, por sua vez, é um sujeito medroso e mentiroso, companheiro de João Grilo – que é levado por este em suas artimanhas pela cidade.

No início da série eles andam pelas ruas anunciando a exibição do filme A Paixão de Cristo, “o filme mais arretado do mundo” (segundo o anúncio deles) – promovido pela paróquia local, comandada pelo Padre João (interpretado por Rogério Cardoso).

A sessão é um sucesso, eles conseguem alguns trocados, mas a luta pela sobrevivência continua.

A partir dai, somos aos poucos sendo levados a conhecer os outros personagens. Uma galeria imensa de personas divertidíssimas.

João Grilo e Chicó empregam-se na padaria de Eurico (interpretado por Diogo Vilela), que é casado com a fogosa Dora (interpretada por Denise Fraga), que tem o costume de trair o marido e é mais devotada à cadela Bolinha do que ao esposo.

Chicó envolve-se brevemente com Dora, mas a chegada da bela Rosinha (interpretada pela Virginia Cavendish), filha do capitão Antonio Moraes (interpretado por Paulo Goulart), desperta a paixão de Chicó, e ciúmes do cabo Setenta (interpretado por Aramis Trindade) e de Vincentão (interpretado por Bruno Garcia), o valentão da cidade.

Os planos da João Grilo e Chicó, que envolvem o casamento entre Chicó e Rosinha e a posse de uma porca de barro recheada de dinheiro, dote da bisavó de Rosinha para a moça, são interrompidos pela chegada do cangaceiro Severino (interpretado por Marco Nanini), que mata todos e é morto em uma situação muito peculiar e engraçada.

João Grilo, Eurico, Dora, Padre João, o Bispo (interpretado por Lima Duarte) e Severino reencontram-se no Juízo Final, onde serão julgados no Tribunal das Almas por Jesus (interpretado por Maurício Gonçalves) e pelo diabo (interpretado por Luís Melo). O destino de cada um deles será decidido pela aparição de Nossa Senhora, a Compadecida (interpretada pela Fernanda Montenegro) e traz um final surpreendente, principalmente para João Grilo.

A adaptação

Apesar do nome, a minissérie Auto da Compadecida é uma adaptação de três peças de Ariano Suassuna: O Auto da Compadecida, O Santo e a Porca e Torturas de um Coração.

Esses dois outros contos agregam subtramas no conto adaptado principal.

O Santo e a Porca é uma peça teatral cômica escrita por Ariano Suassuna em 1957. O texto aborda o tema da avareza e, segundo o próprio Suassuna, é “uma imitação nordestina” da peça Aulularia, também conhecida como a Comédia da Panela, do escritor romano Plauto (escrito entre 194 e 191 A.C.).

A peça conta a história de um velho avarento conhecido como Euricão Árabe. O protagonista é devoto de Santo Antônio e guarda as economias de toda a vida numa porca de madeira. Ao receber uma carta de Eudoro (um fazendeiro) dizendo que este iria lhe privar de seu mais precioso tesouro, Euricão Árabe fica apreensivo achando que Eudoro irá pedir o dinheiro da porca. Caroba, a empregada da casa, entende a situação: o tesouro à que ele se refere é Margarida, filha de Euricão. O fazendeiro deseja casar-se com ela.

O arco dos personagens envolvendo Chicó, capitão Antonio Moraes, Rosinha e a famosa história da porca de barro recheada de dinheiro, é parcialmente inspirada nesta história.

Torturas de um Coração, o segundo conto acessório adaptado para a versão audiovisual de Auto da Compadecida, foi escrito em 1951 e se passa na cidade de Taperoá. Conhecemos Benedito, um rapaz que disputa o coração de Marieta com os concorrentes Cabo Setenta, Afonso Gostoso e Vicentão. Numa grande artimanha, Benedito passa os dois valentões para trás, conquistando o coração de sua pretendida.

Existe uma cena específica do Auto da Compadecida que é uma adaptação quase literal deste desfecho, também envolvendo o personagem Chicó.

Auto da Compadecida: a obra original

O Auto da Compadecida, o conto base, foi escrito em 1955. Sua primeira encenação aconteceu em 1956, no Recife, em Pernambuco. A peça também foi encenada em 1974, com direção de João Cândido.

O Auto da Compadecida projetou Suassuna em todo o país e foi considerada por Sábato Magaldi (famoso teatrólogo brasileiro), em 1962, “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”.

A obra é uma comédia trágica (ou uma tragédia cômica) que mistura elementos da tradição da literatura de cordel, da linguagem oral e do barroco católico brasileiro, sendo uma genúina mistura de cultura popular e tradição religiosa.

Da literatura de cordel, Suassuna pegou emprestado o personagem João Grilo, personagem folclórico presente tanto no Brasil, quanto em Portugal. Também buscou inspiração em dois folhetos de Leandro Gomes de Barros (o maior poeta popular do Brasil de todos os tempos), “O Dinheiro”, também chamado de “O testamento do cachorro” e “O cavalo que defecava dinheiro”.

A peça é narrada pelo palhaço e a história se inicia quando Chicó e João Grilo tentam convencer o padre a benzer o cachorro de sua patroa, a mulher do padeiro. Como o padre se nega a benzer e o cachorro morre, o padeiro e sua esposa exigem que o padre faça o enterro do animal. João Grilo diz ao padre que o cachorro tinha um testamento e que lhe deixara dez contos de réis e três para o sacristão, caso rezassem o enterro em latim. Quando o bispo descobre, Grilo inventa que, na verdade, seis contos iriam para a arquidiocese e apenas quatro para paróquia, para que o bispo não arrumasse problemas.

Depois de toda a confusão sobre o enterro do cachorro, João Grilo arma com Chicó para também tirarem vantagem da situação. Manda Chicó enfiar moedas em um gato e esconder uma bexiga de sangue por baixo da camisa, para o caso de o primeiro plano falhar.

Como havia perdido seu animal de estimação e também era interesseira, João resolve vender o gato que “descomia” dinheiro para a mulher do padeiro, o gato no qual Chicó tinha colocado moedas. Quando o padeiro descobre, volta à igreja para brigar com João. Neste momento, estão reunidos todos na igreja, pois João estava entregando o dinheiro prometido ao padre, ao bispo e ao sacristão.

Ouvem-se tiros e uma gritaria do lado de fora, era o cangaceiro Severino. Ele entrou na igreja, roubou o dinheiro e matou o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher. Na hora de matar João Grilo, este lhe dá de presente uma gaita abençoada por Padre Cícero que teria o poder de ressuscitar as pessoas.

Para o cangaceiro acreditar, João dá uma facada em Chicó e estoura a bexiga com sangue; Chicó cai e João Grilo toca a gaita enquanto o amigo levanta dançando no ritmo da música. Severino, então, ordena a seu capanga que lhe dê um tiro e depois toque a gaita para que ele possa ir encontrar com Padre Cícero e depois voltar. O capanga obedece, atira, mas quando toca a gaita nada acontece. Chicó e João Grilo se atracam com o capanga e este leva uma facada. Quando os dois estão fugindo com o dinheiro que pegam do defunto Severino, o capanga reage e mata João Grilo.

No céu, todos se encontram para o juízo final. O diabo e Jesus apresentam as acusações e defesas. João então chama Nossa Senhora para interceder por eles. É o que ela faz. O padre, o bispo, o sacristão, o padeiro e sua mulher são mandados para o purgatório. Severino e o seu capanga são absolvidos e enviados ao paraíso. João simplesmente retorna a seu corpo.

Quando retorna, vê Chicó lhe enterrando, levanta e dá um susto no amigo. Depois de conseguir fazer Chicó acreditar que está vivo, os dois se animam e fazem planos para o dinheiro do enterro. Até que Chicó se lembra da promessa que fez a Nossa Senhora, que daria todo dinheiro caso João sobrevivesse. Depois de uma discussão, decidem entregar todo o dinheiro à Igreja.

Análise da obra

Como vocês podem ver, a a peça é escrita para ser encenada em forma de teatro de rua, o palhaço atua como um apresentador, entrando e saindo da trama e conversando com o público.

A primeira coisa que se nota é a regionalidade brasileira calculadamente caricaturizada em prol de uma real expressão do “folk nordestino” (Suassuna me odiaria por usar esse termo).
A obra de Ariano Suassuna não é mera exposição barata de “brasilianismo” pra gringo ver e achar “exótico”, mas algo genuinamente popular, que faz a comunhão da alma do sertanejo severino com as suas heranças europeias medievais – pelo fio condutor da religiosidade católica.

Segundo o próprio Suassuna, esse fio de transcêndência é responsável por transformar histórias locais da cultura popular em algo universal da cultura erudita (ou alta cultura).

A universalidade da obra

A universilidade de Auto da Compadecida foi atestada quando a peça estreiou na Europa, onde críticos identificava as histórias com seu povo. Nos Cadernos de Literatura Brasileira (p. 25), Suassuna fala de duas críticas que lhe chamaram a atenção: a de um francês e de um espanhol, que identificaram no Auto da Compadecida, outas histórias:

“O crítico francês escreveu que a história do enterro do cachorro já tinha sido usada por um conterrâneo dele; o espanhol observou que a história do cavalo que defecava dinheiro aparecia numa versão semelhante em nada menos que Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

(…) o francês pensava que era uma história popular do seu pais, o espanhol pensava que a origem estava na novela picaresca espanhola – até que outro crítico espanhol mostrou que ambas eram do século XV. Tinham vindo do norte da África, com os árabes, alcançando a Península Ibérica e de lá vieram parar no Nordeste brasileiro. Quer dizer: eram histórias universais e atemporais”

Ariano Suassuna se inspira em autores medievais, renascentistas e na literatura e cordel nordestina para criar um intercâmbio entre a literatura popular e a literatura ibérica com influência árabe.

Podemos dizer que Auto da Compadecida é uma comédia sócio-sacramental em forma de realismo poético – trabalhando temas como fome, miséria, moral e fé – uma mistura entre “Morte de Vida Severina” (João Cabral de Melo Neto) e “Auto da Barca do Inferno” (Gil Vicente).

Existem outros paralelos com clássicos da literatura universal. João Grilo e Chicó reproduzem alguns traços da dinâmica Dom Quixote e Sancho Panza de Miguel de Cervantes.

Chicó possui uma aura meio dostoiévskyana de “Irmãos Karamazov” – especialmente em seus questionamentos sobre a morte: “tudo que é vivo, morre”.

Otimismo trágico

No entanto, o texto de Suassuna não se resume a “misturas” – ele tem identidade própria – que o mesmo categoriza como “otimismo trágico”.

Se pudéssemos resumir, a obra de Suassuna seria a representação do trágico balanceada pelo riso:

“A gente deve, de olhos abertos para essa tragicidade, enfrentar para construir. Eu gosto da literatura trágica, da tragédia grega, mas não da mórbida e lamentosa do ai, ai ai. A literatura existencialista, por exemplo, vive se lamentando que a vida não tem sentido. Mas ai tem outra saída, a do riso. Pensam que o sujeito que ri é superficial, qundo o riso é uma forma de libertação, de luta, de não-conformação com essa tragicidade. Há uma forma de valentia, seriedade e dramaticidade do riso nos verdadeiros autores (…) Acho essa vitória sobre a tragicidade da vida, pelo riso, um ato de coragem. E a isso já tem sido chamado de otimismo trágico e dentro disso ai eu posso me situar”

(Ariano Suassuna: aventuras de um cavaleiro do sertão).

Para ele, o cômico sobrepõe o trágico como necessidade de equilíbrio través da coragem e valentia do personagem João Grilo.

João Grilo, ao mesmo tempo que é corajoso e valente em sua comicidade, encarna a figura do herói negativo – como bem disse Lígia Vassalo em seu livro “O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna”.

João Grilo é sublimador das classes pobres, que se desforra no plano da sátira e da zombaria. Ele se contrapõe aos valores da identificação ou modelos de conduta (heróis, heroínas) e constitui um antimodelo paródico, posto que é herói e anti-herói ao mesmo tempo.

Medievalismo e Religiosidade

Os elementos medievais em Auto da Compadecida vão desde a própria estética dos contos adaptados, que são escritos em “linguagem falada” – ou seja, próximo da tradição oral, quanto pelos temas religiosos e morais que abordam – através da divisão de personagens entre os tipos puros e religiosos.

Tipo puro são personagens que podem ser resumidos em apenas uma palavra ou simbolo. Temos o “valentão” (Cabo Setenta, Vicentão), o “mentiroso” (Chicó), a “voluptuosa” (Dora), etc. Sua esteriotipação é proposital pois eles também personificam seu próprio comportamento ou pecado. Cabo Setenta e Vicentão representam temeridade, Chicó representa a mentira, Dora a volúpia etc;

Outros personagens podemos chamar de “tipo religioso” – que são personagens sobrenaturais da religião católica, cuja presença é associada a alegoria. Temos aqui Jesus, Maria e o Diabo.

O tipo religioso julga e descreve o tipo puro – condenando ou absolvendo. Tal como uma homilia de um padre numa Santa Missa.

No tribunal, um das cenas mais marcantes, todo os personagens (tipo puro) sofrem o processo de descarnavalização perante o trono de Emanuel (Jesus Cristo). Diante da morte e diante de Deus, todas as máscaras caem e todos se igualam. O julgamento se orienta nos pontos de tensão entre justiça e misericórida. O diabo cumpre seu papel de acusador, listando os inegáveis pecados de cada um. No entanto, todos ali são defendidos por uma mãe Compadecida que não apenas lustra a fé de cada um diante de Deus (seu filho), mas que advoga por eles realçando o sofrimento e, principalmente, o momento de redenção de todos ali presente.

A adaptação audivosisual

Guel Arraes, produtor da minissérie (e do filme por consequência), apropriou-se da obra de Suassuna, resgatando contos míticos da literatura oral, das tradições medievais, da literatura de cordel e da religiosidade popular. Com todo esse caldeirão pluricultural em mãos, adaptou tudo para uma linguagem cinematográfica, misturando realismo fotodocumentário (quando queria ser mais explícito ao falar do sofrimento do nordestino através do slides de fotos), tecnologia de computação gráfica, teatro popular e arranjos circenses.

Guel Arraes conseguiu adaptar não uma, mas três obras de Suassuna ao mesmo tempo – agregando as histórias de uma forma que não aparente nenhuma costura ou colcha de retalhos.

Esta adaptação congrega uma direção competente, um respeito reverencial com a obra de Suasssuna e um elenco extremamente talentoso – o resultado não poderia ser menos que excelente.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção é a repercurssão modesta que o filme teve no exterior. Existem poucas críticas a esse filme. Embora todas fossem positivas, a impressão que ficou em mim é que o o público estrangeiro estranhou muito a predileção pelo formato teatral (com foco nos diálogos), a precariedade estilizada e overacting “hipertelevisivo/novelesco” de todos os atores – que pode ter passado a impressão de um filme despretensiosamente caseiro.

O Auto da Compadecida como filme não tem a mesma projeção de Cidade de Deus ou Central do Brasil. Apesar da universalidade da obra, o filme está tão mergulhado em sua afirmação regionalista que parece ser um filme que só brasileiro irá conseguir entender o quanto é bom (sendo otimista aqui). Essencialmente, não é filme pra gringo ver e, pelo que conheço Suassuna, ele não faz a MENOR questão disso. O Brasil de Suassuna e Leandro Gomes de Barros não deve satisfações ao público estrangeiro – eles é que devem aprender com a gente.

Viva Suassuna! Viva o Movimento Armorial! Viva Nossa Senhora de Aparecida!

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