Não adianta rezar quatro horas e depois chutar um morador de rua

“Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar.”
— Memórias Póstumas de Brás Cubas

Existe uma certa mania de confundir personagem com autor, tal como confundir descrição com apologética. Nos romances de Machado de Assis, fica claro o olhar crítico da sociedade, mas não fica explícito aquilo que ele tem por estima. Criticar as máscaras de virtude não significa criticar os princípios desta virtude.

A maioria dos que se dispõem a analisar a obra de um autor o faz tentando colocá-lo dentro de suas próprias fileiras de pensamento, dentro do ímpeto da iconoclastia vulgar, que visa não apenas desconstruir a máscara, mas a própria essência — palavra proibida para qualquer pessoa que tem o existencialismo como estima.

Machado de Assis descreve, sim, a infidelidade das mulheres e a indiferença dos religiosos, ao mesmo tempo que preserva a ideia da fidelidade e da religião — como está explícito no trecho acima, a respeito do tio cônego de Brás Cubas. Pode ocorrer-lhe uma certa sensação de intangibilidade desses princípios, pois não vejo Machado de Assis como um santo, mas, no geral, seu tom é de denúncia e correção moral; não por uma via moralista, de caretas e cenho franzido — mas a denúncia em tom de galhofa, não menos séria do que engraçada.

Isso se dá pelo escritor considerar o “brasileiro de sempre”, que nunca foi um moralista puritano — mas um católico medieval e faceiro; que antes ri dos cornos de Lobo Neves do que se incomoda com o fato da traição, mas sem retirar da infidelidade o peso que lhe é próprio. O brasileiro não se acanha pela vergonha, mas pelo ridículo.

Isso tudo foi mudando com uma gradual puritanização da moral pública que, por incrível que pareça, não veio dos religiosos ou do povo, mas das classes letradas — encasteladas nas universidades.

Um sintoma endêmico no Brasil é essa obsessão com a tal da “hipocrisia”. A tal da “hipocrisia” se tornou a única e principal acusação contra o cristão comum — aquele que é persistentemente falho e persistentemente redimido. Mas não é aquela hipocrisia que deve, sim, ser observada e corrigida; aquela hipocrisia da crítica machadiana, dos que se preocupam apenas com o “lado externo”, das “preeminências”“sobrepelizes” e “circunflexões” — mas uma tal hipocrisia inventada, que se especula nos outros e nunca em si mesmo; pior, acusa-se de hipocrisia um outro inventado:

“Não adianta rezar quatro horas e depois chutar um morador de rua?”

Sim, seu Júlio, sua “crítica machadiana” atingiu literalmente zero pessoas e fez o próprio Machado de Assis se revirar no túmulo, com vontade de romper a campa, tal como Brás Cubas, e lhe dar umas boas bofetadas.

Agora, lanço aqui o desafio: consegues fazer caridade sem mídia, tal como o outro?

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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