Os paradoxos de Lovecraft

O autor de fantasia Fritz Leiber certa vez descreveu H.P. Lovecraft como “o Copérnico da ficção de terror”.

Segundo Leiber, assim como Copérnico virou de cabeça para baixo a visão de mundo antropocêntrica, Lovecraft questionou a soberba da razão humana que, sozinha, se propôs a iluminar a humanidade e tirá-la do mundo das trevas e incertezas.

Desse modo, Lovecraft, mesmo sendo ateu convicto, pode ser visto como uma espécie de sacerdote medieval errante do século XX. Um indivíduo que se aventura no abismo noturno da irracionalidade e falta de lógica, afirmando categoricamente que religiosos, supersticiosos, sonhadores, poetas e loucos contemplam melhor a verdade do que cientistas e lógicos.

A cidade de R’lyeh e Cthulhu são as duas expressões mais evidentes da estética lovecraftiana e, ao mesmo tempo, da ética.

Enquanto Cthulhu, a entidade mais famosa dos mitos de Lovecraft, é uma figura orgânica palustre, lodosa e gotejante – uma mistura blasfema de polvo, homem e dragão – a cidade ciclópica e não-euclidiana de R’lyeh, onde dorme Cthulhu, é descrita como um terrível conglomerado arquitetônico vertiginosamente irregular.

A tétrica imagem de Cthulhu dormindo sob a desorientante cidade de R’lyeh resume todas as influências estéticas, éticas, intelectuais e biográficas de Lovecraft numa combinação única de geologia, arqueologia, biologia, astronomia, mineralogia, expressionismo, futurismo, cubismo e racismo.

Cthulhu é a expressão cósmica do racismo de Lovecraft e reflete a titanização da mistura como a miscigenação monstruosa de criaturas que não deveriam ser misturadas. Éticamente questionável, mas esteticamente brilhante.

R’lyeh, por sua vez, é a expressão cósmica arquitetônica da rejeição do autor ao modernismo.

Segundo o livro “Utopia(s) – Worlds and Frontiers of the Imaginary”, a arquitetura de R’lyeh está associada a monstros e pesadelos porque está sendo confrontada com a tradicional arquitetura georgiana do Nordeste dos EUA, conhecida e querida pelo autor.

Lovecraft gostava de lugares que evocavam vida familiar simples, conforto e intimidade.

A ideia de cidade “desorientante” é uma expressão de descontentamento tirada da experiência de Lovecraft em Nova York, onde viveu brevemente, e reflete a rejeição do autor por sociedades cosmopolitas e multiculturais.

É curioso notar que a imaginação criativa de Lovecraft nasce daquilo que ele mais detestava. Ele nunca ficou conhecido por poesias bucólicas sobre a vida pastoril de imaginação neoclássica. A descrição arquitetônica de R’lyeh é uma célebre e fulgurante invenção típica de um modernista.

Lovecraft é um autor que leva o paradoxo ao limite da contradição. Ateu e antiiluminista num nível próximo de um monge católico medieval. Conservador e um involuntário criador modernista. Racista mas, na minha opnião, admirador secreto de um status de sabedoria primitivo africano que o homem branco abandonou em sua soberba racionalista.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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