“Nós falamos com palavras, mas Deus fala com palavras e coisas”
São Tomás de Aquino
Qualquer pessoa que pare para olhar as pirâmides maias e egípicias vai notar que elas possuem semelhanças muito curiosas.
O primeiro contato que tive com as pirâmides maias nem foi por meio de livros ou coisa do tipo, foi através de um jogo.
Eu fui viciado em um jogo chamado Aero Fighters 2 (eu era uma das únicas crianças no Brasil a ter um Neo Geo em casa). Nesse jogo, você escolhia um piloto e começava uma jornada pelo mapa mundi, destruindo os inimigos invasores (que descobrimos, mais tarde, serem alieníginas).
Quando o caça sobrevoava o México, todo cenário que você via abaixo era composto por estranhas pirâmides. Eu acreditava que isso era uma falha no jogo, ou um desconhecimento dos realizadores – que queriam representar o Egito e acabaram se confundindo.
Eu associava automáticamente pirâmides ao Egito – até descobrir que sua arquitetura era curiosamente replicada em outros lugares do planeta. Lugares que, de uma forma espantosa, eram incomunicáveis do ponto de vista geográfico e cultural.
Diversas teorias sobrevoaram meu entendimento. Desde a insatisfatória “mera coincidiência” até as hiperbólicas teorias de intervenção alienígina, algo provavelmente tirado de livros como “Eram os Deuses Astronautas”.
A única coisa que eu sabia é que havia um elo perdido de uma narrativa histórica que ligava as civilizações maias e egípicias (entre outras). Talvez um continente perdido. Um continente que foi destruído por fogo ou afogado pelo mar.
Os hindus, os sumérios, os gregos e os hebreus possuíam histórias de um grande dilúvio engolindo a terra.
Em 1896, o arqueólogo britânico Augustus Le Plongeon veio com a ideia do continente Mu, de onde teriam originado todos os seres humanos.
Augustus Le Plongeon estudou as ruínas pré-colombinanas da América, particularmente as da civilização maia no norte da Península de Yucatán.
Ele e Alice (sua esposa) imaginaram histórias, com os locais maias em Yucatán sendo o berço da civilização, pontuados por longevas e ricas dinastias.
Os Le Plongeons nomearam reis e rainhas dessas dinastias e disseram que várias obras de arte (como a estátua de Chac Mool) eram retratos de uma realeza antiga. Os Le Plongeons reconstruíram uma história detalhada, mas fantasiosa, da rainha Moo e do príncipe Coh (também conhecido como “Chac Mool”), na qual a morte do príncipe Coh resultou na construção de monumentos em sua homenagem.
Embora seus escritos contenham muitas noções que não foram bem recebidas por seus contemporâneos e foram posteriormente refutadas como pseudo-arqueologias, Le Plongeon deixou um legado duradouro em suas fotografias, documentando as ruínas antigas mesoamericanas e sendo considerado um dos pioneiros do maianismo.
Apesar de suas pesquisas não terem validação científica, seus estudos acabaram servindo para uma série de teorias exotéricas, espiritualísticas, místicas, artísticas e lúdicas, como as de Ignatius L. Donnelly (autor de Atlântida, um mundo antediluviano), Helena Blavatsky (criadora da Teosofia) entre outros.
Os Le Plongeons também influenciaram Hugo Pratt e o maravilhoso episódio de Corto Maltese: A Cidade Perdida de Mu.
Mu é o continete perdido que Augustus Le Plongeon defendia ser o vácuo histórico-narrativo que unia a cultura e a arquitetura mesoamericana, australiana e egípicia. Seria uma terra localizada no Oceano Pacífico, que teria sido misteriosamente destruída. A “terra de Mu” também seria um nome alternativo para Atlândida ou para hipotética terra da Lemúria por James Churchward.
Hugo Pratt em “A Cidade Perdida de Mu”, nos conduz em uma expedição exploratória com Corto Maltese, Gold Mouth, Morgana, Tristan Bantam, Levi Colombia, Professor Steiner, “o Monge”, Cain Groovesnore, Soledad e (é claro) Rasputin – cada um com sua própria razão para encontrar o reino mítico.
Somos levados para um reino escondido onde se encontra um estranho labirinto paradoxalmente claustrofóbico e expansivo. A grande sacada do autor é trabalhar essa dualidade, que nos coloca entre um reino físico e onírico – e nos faz questionar se essa mesma dualidade representa o real e se tudo aquilo que é simbólico e tudo aquilo que é tátil não podem ser uma coisa só.
Dentro do labirinto, encontramos, além de enigmas e engenhosas armadilhas, representantes de povos distintos e um cenário geopolítico próprio com seus próprios conflitos e acordos em andamento. Também encontramos uma improvável geografia, eventos sobrenaturais e palavras mágicas.
O personagem, Corto Maltese, é um marinheiro da Marinha Mercante que está interessado em aventuras e civilizações antigas.
Obviamente, alguém com esse espírito aventureiro, desbravador, explorador e pesquisador, só poderia ser, ou português, ou britânico ou norte-americano, da costa Leste dos Estados Unidos.
Ele combina uma miríade de coisas: tem nacionalidade britânica, embora tenha nascido na ilha de Malta. É residente de Antígua, uma ilha no Mar do Caribe, que faz parte da nação insular de Antígua e Barbuda, embora sua casa seja o mundo. É um nômade do mar, uma espécie de cosmopolita. Usa um chapéu de marinheiro e um brinco na orelha esquerda, que o faz uma mistura de oficial e pirata.
Em “Mu, a cidade perdida”, nosso herói vai em busca de uma cidade mística, perdida, como Atlântida ou Mu, que desapereceu há aproximadamente 12 mil anos.
Corto Maltese atraca na América Central com uma equipe de pesquisadores e místicos. Uma amiga do grupo é capturada por indígenas e Corto Maltese se lança numa missão de resgate, que vai levá-lo até um misterioso labirinto que pode ser a porta de entrada para a cidade perdida de Mu.
A narrativa é labiríntica, os seus guias vão desde entidades da mitologia da américa pré-colombiana até santos católicos. No meio da aventura há uma misteriosa aparição de um monge, que se identifica como São Brandão, o Navegador, o santo padroeiro dos marinheiros e viajantes, que era respeitado até pelas baleias.
A história mistura realidade, mitologia, religião, sonhos e viagens psicotrópicas. Há constantes intersecções entre essas coisas ao longo da aventura. O desenho cumpre uma função narrativa, as formas parecem estar sempre se liquefazendo.
Corto Maltese enfrenta deuses indígenas, homens-escorpiões, uma tartaruga gigante, um jacaré gigante, faz acordo com entidades misteriosas e até enfrenta a própria sombra.
Terminando de ler essa maravilhosa história, pensei comigo mesmo: Será que a arqueologia clássica não pode explicar o desaparecimento de um continente pois está fechada para a possibilidade dos caprichos divinos? Caprichos que não encontram contradições entre “verbo” e “carne”, entre “palavras” e “coisas” (como bem disse São Tomás de Aquino).
A edição da Nemo tem um prefácio maravilhoso com textos de Marco Steiner e uma coletânea de fotos de Marco D’Anna.
Só pelo prefácio já valeria a pena.
Ele vai passeando por curiosidades arqueológicas, culturais e folclóricas para nos ambientar a obra.
Mesmo com explicação científicas e revelações divinas, a Terra ainda parece virgem dado a uma enorme quantidade de histórias e mistérios não explicados.
As fotos de Marco evocam as práticas religiosas primitivas que, longe de encerrarem os mistérios, davam a eles apenas expressão visível – para além da perplexidade individual.