“Como é grande esta potência da memória; tão grande, meu Deus, esse amplo e infinito santuário! Quem jamais lhe chegou ao fundo? E sendo tal virtude propriedade da minha alma, pertencente à minha natureza, eis que não sou todavia capaz de abarcar totalmente o que sou! É pois estreito o espírito para se abarcar a si mesmo. Mas onde há de estar o que de si próprio não abarca? Porventura fora de si e não em si? Então porque não se abarca a si mesmo? Grande admiração me nasce de tudo isto, tomado de espanto me fico!”
Santo Agostinho neste trecho tirado do livro Confissões, de forma bela, simplesmente nos mostra que o extraordinário (poeticamente materializado num “infinito santuário”) está contido no ordinário (neste caso, a memória – aquelas imagens e sentimentos que abundam nossa claustrofóbica mente).
Santo Agostinho não elaborou uma definição complexa, apenas foi perspicaz o suficiente para revelar o óbvio.
A beleza da perspicácia agostiniana é notar que ela vê Deus como óbvio demais para ser plenamente confirmado pela nossa inteligência ou pelas artificialidades de nossas ciências e métodos.
A descrição da memória em Santo Agostinho é apenas uma entre tantas outras possíveis que metafísicamente revelam que as pistas de uma existência sobrenatural e infinita sempre estiveram debaixo de nossos narizes (ou dentro de nossas cabeças, propriamente dito).
Ela é científica demais para caber na teologia, teológica demais para caber numa poesia e poética demais para caber na ciência. É um aureolado fecundo de espanto filosófico que sinaliza não apenas a existência do espírito, mas a sua transcendência.
A Memória em Santo Agostinho
Memoria Rerum – Memória Sensível
Existem categorias de memórias que Santo Agostinho discute em seu livro “Confissões”.
A primeira é a Memória Rerum, aquela memória que decorre do conhecimento sensível, das fricções deste “infinito santuário interior” com o mundo exterior. Fricções estas que ocorrem através dos sentidos (visão, olfato, audição, paladar etc) e que são elaborados e reelaborados constantemente em nossa mente até significarem algo.
No entanto, a memória não seria, nessa dinâmica, um palácio vazio que vai aos poucos sendo povoado com sons, cheiros, visões e barulhos do mundo exterior (as portas da carne), mas algo que já contém (em potênca) a realidade dos objetos em estado caótico.
O conhecimento nesse caso é sempre um reconhecimento.
O pensamento (cogitare) é um movimento (muitas vezes débil e imperfeito) de reunião e recondução do disperso caótico contido na memória (em potência) ao ordenado cósmico originalmente criado por Deus.
Percebam que o prefixo “re” aparece constantemente aqui: “re”conhecer, “re”unir, “re”conduzir etc.
Isso significa que, para Santo Agostinho, toda inteligência é na verdade uma espécie de “re”cordação – o que sugere que as nossas tíbias descobertas da verdade são, na verdade, “re”descobertas – uma recordação de algo que nos era conhecido e que se perdeu, um caminho de volta – algo que coaduna com a narrativa de queda do Gênesis.
A contemplação da memória como a contempleção da alma
Santo Agostinho ao investigar a memória desloca o espanto filosófico do objeto para o sujeito.
Nesse sentido, o santo filosófo joga inesperadas luzes a respeito da questão da centralidade do homem no plano da criação de Deus em relação a todas as outras coisas criadas no mundo material.
Ai do mundo que parou de ler Santo Agostinho!
Sabe aquele argumento que fala que somos insignificantes pois somos “pequenos demais” em relação do universo?
Esse argumento que relaciona tamanho com importância cósmica parece unir tanto o ateu que tenta brincar com metafísica quanto o “fundamentalista” religioso que acha que a Terra é plana.
Enquanto um tenta debochar com o fato do centro da criação estar localizado num lugar periférico e “insignificante” do universo, o outro busca diversas formas provar o contrário: a Terra não é igual aos outros astros, ela é um “reino” plano e tudo orbita ao seu redor.
Geralmente as pessoas vem essas duas figuras em lados opostos, mas elas são mais parecidas do que elas mesmas imaginam ou admitem.
O que diz Santo Agostinho sobre essa discussão:
“Andam os homens a admirar as altitudes das montanhas e as portentosas ondas do mar, as largas correntes dos rios e a vastidão do oceano, as voltas dos astros e deixam-se a si mesmos! E não se espantam com o fato de eu não ver com os olhos nenhuma destas coisas enquanto delas falava e mais, de nem sequer poder falar delas, saos montes e às ondas e aos rios, que vi, e ao oceano, em que tive de acreditar, não os visse dentro de mim, em espaços tão vastos como se fora de mim os visse.”
Acima, temos a descrição da memória em Santo Agostinho. Esta é apenas uma entre tantas outras possíveis que metafísicamente revelam as pistas de uma existência sobrenatural e infinita dentro de nós – muito maior que qualquer astro ou galáxia.
O espanto filosófico de Santo Agostinho com a memória é que ela não é apenas capaz de apreender e admirar as coisas de fora (“as altitudes das montanhas e as portentosas ondas do mar, as largas correntes dos rios e a vastidão do oceano, as voltas dos astros”), mas ela se dirige também para dentro, para os muros da interioridade do homem, calculando a força deste espanto através do seu próprio sentido.
Existe já na memória das coisas exteriores a contemplação voltada para o interior. O homem só pode contemplar o exterior passando pela interiorização. Nessa concepção, a memória chega à pessoa e ao espírito e, então, se projeta para Deus.
Santo Agostinho sublima a consideração da “memória em si” e abre um novo campo de tradição filosófica considerando a introspecção do sujeito da memória (memoria sui).
Memória Sui e Memória Dei
Da contemplação da Memoria Rerum (memória decorrente dos sentidos, da suma exterioridade) e da Memoria Sui (memória consciente de si, que enxerga a si mesma, nas estruturas espaço-temporais própias) – Santo Agostinho chega na Memoria Dei.
Aqui Santo Agostinho reflete a natureza humana enquanto “imagem de Deus”, tal como descrito no Genesis.
A Memoria Dei é quando a Memoria Sui se permite reconhecer como modelo divino de que ela é imagem.
A Memoria Sui é então, na verdade, concomitante com a Memoria Dei. Isso quer dizer, em outras palavras, que a memória é, por excelência, um locus theologicus – ou seja, a interioridde humana é uma via teológica.
“Passarei ainda além da memória, a ver se por lá Vos encontro, ó verdadeiro bem, ó segura suavidade. Se lá Vos encontro!? Se Vos encontro fora da minha memória, então quer dizer que me esqueci de Vós. E como Vos hei de encontrar se de Vós me não lembro?”
A memória que caminha para encontrar a presença indefectiva de Deus é a memória que caminha, antes de tudo, para reconhecer as verdades fragmentarias da intelecção e projetar-se sobre as aparências caóticas do sentido.
O interessante é que essa concepção trina da memória (Memoria Rerum, Memoria Sui e Memoria Dei) coaduna perfeitamente com trindade divina arquetípica (Pai, Filho e Espírito Santo) – reforçando a ideia agostiniana do homem como “imagem e semelhança” de Deus.
O esquema trino percebido por Santo Agostinho revela influências da escola platônica que representa o homem num composto unitário de três elementos: soma, psichê e nous – sendo este último a parte intelectiva do segundo.
Material de estudo
https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas53/11_Miranda.pdf
https://mensetanimus.wordpress.com/2016/08/14/a-questao-da-memoria/