Quando falamos de “cinema de propaganda” lembramos prontamente de produções estadunidenses.
Essas produções cinematográficas foram particularmente muito fortes durante a Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria.
Os Estados Unidos, por meio do cinema, se promovia como repesentante da liberdade cívica e econômica, diferente dos seus inimigos: os nazistas e os comunistas.
No entanto, essa não é uma exclusividade do cinema americano.
O cinema alemão, o cinema soviético e também o cinema japonês tentavam cumprir um papel semelhante.
O Japão, após a reforma Meiji e, principalmente, durante a Segunda Guerra Mundial, utilizou o cinema como uma ferramenta de propagação de sua doutrina da honra, tendo, inclusive, promulgado leis estatais para incentivo desse tipo de produção.
A “cultura da honra”, que norteia os princípios nipônicos durante a primeira metade do século XX, pode ser compreendida como uma “cultura política” baseada nos esforços do Estado japonês em reaproveitar o conceito do bushido (o código de conduta samurai) e viabilizar com ele um apoio das massas, que normalmente tem um perfil conservador e são cativados por esse tipo de tema moral.
A promoção da cultura da honra durante a Era Meiji foi uma das estratégias estatais para obter o convencimento popular necessário para as rápidas transformações que o Japão necessitava. Devemos lembrar que a Era Meiji surgiu de uma certa desfragmentação identítária do Japão, tanto pelas guerras civis quanto pela ocidentalização de costumes e pela abertura econômica. Essas transformações demandaram um resgate de uma ideia de identidade nacional, pois o país ambicionava entrar numa corrida imperialista – tal como os ocidentais. A identidade nacional promoveria tanto uma coesão social quanto uma organização eficiente do seu expediente militar.
Em suma, podemos entender essa estratégia como a apropriação dos valores embrionários de um povo e a instrumentalização desses valores para um determinado fim.
Essa apropriação se torna evidente (e até um tanto caricata) nas ascenções fascistas.
É bom pontuar aqui um distanciamento das interpretações de esquerda quando analisam o fascismo no âmbito cultural.
O fascismo, em suas diversas formas, sempre instrumentalizou aquilo que é legítimo e orgânico dentro de uma sociedade. Seja os valores, seja intelectualidade ou a arte. Vemos como a nazismo, por exemplo, empreendeu um esforço para apropriar-se de Nietzsche, Goethe e Wagner.
Os valores no fascismo nunca são inteiramente criados nele mesmo, mas capturados nas memórias coletivas de uma tradição, ou de uma consagrada intelectualidade nacional – algo que a miopia materialista, que se tornou endêmica no pensamento de esquerda, não consegue perceber.
Em suma, o fascismo é um processo de estatatização e esvaziamento dos valores de uma nação.
Durante a Segunda Guerra Mundial, época em que o Japão lutava ao lado dos nazistas, o cinema japonês promovia o “yamato-damashii”, ou o “espírito japonês” – um conceito que ambicionava incutir no seio individual de cada cidadão a noção de pertencimento à nação e concretizar no imaginário de todos a “esperada vitória”.
Outros aspectos da tradição japonesa foram estatizados e propagandeados nos meios culturais, como a ideia de ancestralidade divina do povo e do imperador – uma ideia de que se comunica com uma percepção universal e orgânica da aristocracia como algo permeado com algum perfume místico.
Quando o fascismo se torna o porta-voz das tradições orgânicas de um povo, seus inimigos acabam se radicalizando ao ponto de promoverem, de forma equivocada, uma revolução completa de costumes e valores, tornando o outro lado cada vez mais reativo.
A única coisa que pode resultar disso é um cenário de vai-e-vem cíclico de réplicas reacionárias e tréplicas progressistas.
A tradição, quando estatizada e esavaziada, passa a ser assimilada pelos fascistas por aquilo que ela não é e atacada por aqueles que ignoram que sua verdade, gostando ou não, ainda se mantém serena num assentamento de experiências milenares.
São poucos os artistas que conseguem fugir dessa prisão lógica e fazer obras que conseguem valorizar a tradição sem ascentuar o fascismo e criticar o fascismo sem vandalizar os valores da tradição.
Akira Kurosawa é um destes artistas. Podemos pegar dois filmes que exemplificam essa postura.
O primeiro é “Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre” de 1945 (lançado apenas em 1952) e o outro é “Não Lamento Minha Juventude” de 1946.
O primeiro filme é uma exposição poética da aristocracia tradicional, da organicidade das relações entre nobres, súditos e a casta guerreira – não se furtando da existência das contingências políticas que até hoje soam atuais (com golpes e perseguições) e dos problemas sociais típicos da época.
O segundo filme é a exposição do fascismo em si, uma imposição ditatorial assentada na instrumentalização de valores tradicionais que, com a desculpa do anti-comunismo, se torna promotor de perseguição política e alienação social.