“Peça de Exposição” é um conto escrito por Philip K. Dick em 1954.
Nesta história, que se passa no futuro, acompanhamos o protagonista George Miller.
Ele não gosta da sociedade rígida, sem humor, regulamentada e conformista em que vive. A única coisa que ele gosta é seu trabalho na Agência de História, onde se especializou como pesquisador do século XX.
Fascinado com o passado, ele reproduz em si as vestes e os costumes do século XX – apenas para manter o bom humor e para fazer uma imersão no seu objeto de estudo.
Certa manhã, recém-chegado ao trabalho, ele ouve um barulho no fundo da exposição da América dos anos 50 e vai investigar. Lá ele admira uma casa da época, decorada com detalhes precisos. E dentro de casa, tem crianças. E uma mulher que diz que é sua esposa.
A história é uma exploração inicial do conceito de realidades mutáveis, um tema comum nas obras subsequentes de Dick.
Temos aqui a ideia de um mundo construído com tanta precisão que “se torna real”, um mundo que exulta de fantasia realizada, um mundo falso que “se fez carne” – ou apenas a descrição fantasiosa de um delírio decorrente de uma monomania patológica.
Sempre falei bem dos contos de Philip K. Dick, mas nunca mencionei suas qualidades como escritor propriamente dito.
Sempre vi em seus contos esboços interessantes de ensaios filosóficos e um pioneirismo na discussão sobre o impacto da realidade virtual sobre o mundo concreto.
“Peça de Exposição”, além de contar com toda essa temática familiar ao escritor, é um dos mais bem escritos contos de Philip K. Dick.
Existe uma ambiguidade que vai te acompanhando ao longo de quase toda a leitura.
Nunca está claro se o protagonista é um homem do século XX e está imaginando uma vida futura ou vice-versa. Nunca está claro se a “peça de exposição” é de fato um portal para viagem no tempo ou se isso é apenas parte do delírio.
Philip K. Dick neste conto chega a ser machadiano. Ele consegue te convencer tanto da possibilidade real de viagem no tempo quanto a de um mero colapso mental fazendo sutis exposições de características do protagonista que podem fazer você concluir, com bons argumentos, tanto uma coisa quanto outra.
Episódio 1: Real Life (Electric Dreams, Amazon)
⭐⭐
O conto “Peça de Exposição” se transforma no episódio “Real Life” na versão da Amazon. Não apenas o título mudou, mas praticamente tudo do conto original: os personagens, as situações, o cenário e até mesmo o sentido do conto.
Na versão da Amazon, dirigida por Jeffrey Reiner e roteirizada por Ronald D. Moore, temos dois personagens principais: Sarah, uma policial lésbica que vive no futuro, e George, um brilhante designer de jogos, heterossexual, que vive no passado.
Sarah é uma pessoa deslocada que utiliza um dispositivo para viver uma realidade virtual – nessa realidade, ela é George. George é uma pessoa atormentada por um passado violento e, como forma de escapismo, desenvolveu um aparelho de realidade virtual. Quando ele usa, ele é Sarah.
Não sabemos qual dos dois é real e qual é a projeção virtual.
É George que se fantasia num futuro “perfeito” ou Sarah que se fantasia no passado, com uma estranha necessidade de autopunição por um sentimento pleonástico de culpa por “pecados reais ou imaginários”?
A única coisa que se manteve do conto original é uma difusa ideia de ambiguidade e uma discussão superficial sobre realidade e ilusão.
Esqueça toda a construção vagarosa de psicomania presente no conto original. Aqui, as viagens entre um mundo e outro acontecem na velocidade de um clique e a série fica freneticamente ziguezagueando entre uma realidade e outra.
O dispositivo funciona aqui como um facilitador de roteiro, tal como algumas conveniências forçadas inseridas apenas para projetar um paralelismo entre Sarah e George (como o fato de George, além de ser um programador, também ser um “justiceiro noturno”). Recursos infantis de um roteiro fraco e preguiçoso.
Além de tudo, o episódio não apenas muda os personagens mas, pior, inverte completamente o sentido do conto.
No conto original, o futuro é uma distopia totalitária e o passado é uma retropia, um refúgio escapista do protagonista em uma América dos anos 50 totalmente idealizada. No episódio da Amazon, o futuro vira uma utopia asséptica e “desconstruída”. Tão perfeito que somente a mente de uma pessoa dissonante com tal “paraíso” como Sarah pode ser capaz de querer se aniquilar num passado em que ela, “o horror dos horrores”, é um homem heterossexual.