A irrelevante comparação entre Mithra e Cristo

Mithra (ou Mitra, dependendo da transliteração) é uma das figuras mais importantes e complexas da mitologia indo-europeia, com forte presença tanto nas tradições persas quanto em outras culturas antigas, como a romana e a indiana. Sua história e papel nas diversas religiões que o adotaram refletem uma combinação de atributos divinos, cósmicos e de justiça, sendo um deus associado à luz, à verdade, à lealdade, à amizade e à proteção.

No contexto do zoroastrismo e do masdeísmo, Mithra é uma das divindades mais poderosas e reverenciadas, frequentemente visto como uma manifestação de Aúra-Masda, o deus supremo.

Seu culto remonta ao hino masdeísta Mihr Yasht, que Mircea Eliade considera o mais surpreendente e importante hino da história do masdeísmo, religião em que Mithra é promovido como deus-paladino na luta contra os daevas e os ímpios.

“Quando criei Mithra nas amplas pastagens, declara Aúra-Masda, eu o fiz tão digno de veneração e reverência quanto eu mesmo” (Yasht, 10:1).

Ele é uma figura central no Avesta, o texto sagrado do zoroastrismo, onde é retratado como um deus solar e um protetor da ordem cósmica. Sua função é manter o equilíbrio entre o bem e o mal no universo, sendo invocado para ajudar os justos e proteger aqueles que seguem os caminhos da verdade.

Segundo Eliade, Mithra é o deus dos contratos, e ao prometer adorá-lo, o fiel assume o compromisso de não romper. Ele também é o deus da guerra, podendo se mostrar violento e cruel. Além disso, é um deus solar, associado à luz (10:142), possuindo mil orelhas e dez mil olhos (19:141), ou seja, é onividente e onisciente, como todo deus soberano. Mithra é, ainda, o provedor universal que assegura a fertilidade dos campos e rebanhos (10:61s).

Esse fenômeno, explica Eliade, é comum na história das religiões: uma divindade acumula múltiplos e, por vezes, contraditórios atributos, com o propósito de alcançar uma “totalidade” necessária para sua promoção, momentânea ou permanente, à categoria dos grandes deuses.

Sua abrangência não se restringe ao zoroastrismo e ao masdeísmo. Mithra compartilha uma herança comum com outras divindades do panteão indo-europeu. Sua figura aparece também nos textos védicos da Índia, onde Mitra, em conjunto com a divindade Varuna, personifica a luz do dia, a ordem universal e o conceito de verdade e justiça. No contexto védico, Mitra está relacionado ao sol e à amizade, desempenhando um papel semelhante ao de seu homólogo persa, embora em um cenário teológico diferente.

Na tradição romana, Mithra foi absorvido pelo império como uma divindade solar associada ao império e à vitória. Sua popularidade cresceu durante os primeiros séculos da era comum, especialmente entre os soldados romanos, que viam nele um deus protetor e uma fonte de força. A imagem de Mithra matando o touro, símbolo de sua luta contra o caos, foi particularmente significativa e reverenciada em templos chamados “Mithraea”, onde os seguidores se reuniam para adorar.

O culto de Mithra tem sido objeto de comparação com o cristianismo, uma vez que várias práticas e símbolos do mithraísmo parecem, na visão de alguns, ter influenciado a formação do cristianismo primitivo.

A data do solstício de inverno, 25 de dezembro, era comemorada como o nascimento de Mithra, coincidindo com a comemoração do nascimento de Jesus em algumas tradições cristãs. Além disso, a ideia de um salvador divino, a salvação e a vida após a morte, e o universalismo, elementos presentes no culto de Mithra, são frequentemente comparados com crenças cristãs semelhantes.

Embora existam imprecisões nessas comparações, vamos supor que elas sejam verdadeiras: e daí?

Muitos tendem a interpretar tudo pela ótica materialista das influências diretas, fazendo paralelos entre as figuras de Mithra e Cristo em uma análise superficial.

Essas semelhanças são frequentemente mencionadas de maneira detratora por pessoas incultas, mais obcecadas com o tema da originalidade do que com a verdade por trás do mito.

Pessoas que se impressionam demais com o fato de as religiões tratarem de temas semelhantes são aquelas que, normalmente, tratam os textos sagrados como o centro da religião.

Na realidade, o caráter textual da religião era, frequentemente, apenas uma manifestação meramente estatutária. Importante, mas apenas estatutária.

O verbo divino para um cristão não é o texto sagrado, mas uma pessoa: o próprio Cristo, ao qual o texto sagrado, quando comparado, se torna um acessório.

O próprio caráter universal da mensagem de Cristo, direcionado a todos os povos do mundo, simbolizado pela primazia da adoração dos magos, é suficiente para entender que a construção de mitos ao redor do mundo pode, eventualmente, estar certa. Qual é a grande novidade?

Se um texto sagrado diz que a grama é verde e outro diz a mesma coisa, o mais evidente não é afirmar que um texto copiou o outro, mas sim que ambos estavam observando a mesma realidade.

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