Era uma manhã quente na região da Sardenha, onde o vento trazia consigo o cheiro da terra molhada e o eco distante dos sinos. Os repiques anunciavam a chegada do Merdule e do Boe, figuras centrais de uma tradição que remontava aos tempos antigos do Mediterrâneo. O Merdule, conhecido como o “Dono do Boi”, ajustava sua máscara de feições humanas, austera e imponente, enquanto o Boe, representando o touro, uma divindade ancestral de origem púnico-nurágica, exibia uma máscara que evocava força e selvageria.

A procissão dos dois era ritmada por passos cadenciados, com os sinos do Boe marcando o compasso. O Merdule, segurando firmemente seu bastão, observava atentamente seu animal. Naquele momento, homem e natureza coexistiam em aparente harmonia.

Subitamente, o Boe deu um salto, e o som dos sinos tornou-se caótico. O animal, antes calmo, começou a se rebelar contra seu mestre, seus movimentos transformando-se em gestos selvagens e imprevisíveis. O Merdule, percebendo a mudança, brandiu seu bastão, tentando restaurar a ordem. O chicote de couro, a “sa Soca”, estalou no ar, mas o Boe não recuou. Em vez disso, investiu contra o Merdule, num embate que simbolizava a eterna luta entre a domesticação e a rebeldia selvagem.

Quando o confronto finalmente chegou ao fim, o Merdule conseguiu acalmar o Boe, restaurando uma harmonia momentânea. Mas ambos sabiam que, em breve, o ciclo se repetiria: o Boe se rebelaria novamente, e o Merdule teria mais uma vez de se impor. Os sinos, que antes tilintavam em desordem, agora soavam em uníssono, marcando o ritmo inicial da procissão, enquanto o vento continuava a perfumar o ar, trazendo consigo o cheiro da terra molhada e o eco distante de uma luta tão antiga quanto o próprio tempo.

Foto: Ashley Suszczynski

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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