Better Call Saul e a Redenção

Better Call Saul é uma série dramática norte-americana criada por Vince Gilligan e Peter Gould. A série é uma pré-sequência derivada de Breaking Bad, que também foi criada por Gilligan.

Os eventos de Better Call Saul decorrem a partir de 2002 e contam a história de um simples advogado chamado James Morgan “Jimmy” McGill (interpretado por Bob Odenkirk), seis anos antes de sua aparição em Breaking Bad, mostrando sua trajetória e seus problemas antes de se tornar o infame Saul Goodman. Alguns eventos exibidos em Better Call Saul situam-se depois de Breaking Bad, embora sejam explorados de uma forma extremamente breve.

As atuais seis temporadas da série possuem 10 episódios cada, com a primeira estreando em 8 de fevereiro de 2015, a segunda no dia 15 de fevereiro de 2016, a terceira, no dia 10 de abril de 2017, a quarta temporada em 8 de agosto de 2018, a quinta em 23 de fevereiro de 2020, e a sexta em 18 de abril de 2022. Todas foram transmitidas originalmente no canal AMC. A distribuição da série em países da América Latina e Europa fica por conta da Netflix.

A sexta e última temporada da série está dividida em duas partes, a primeira parte da temporada conta com 7 episódios, e a segunda parte contendo mais 6 capítulos extras, 13 no total.

A temporada final conta os desfechos finais para esclarecer os acontecimentos finais de Breaking Bad.

Tal como Breaking Bad, Better Call Saul tem recebido uma enorme aclamação por parte da critica, obtendo diversas indicações, como cinco Emmys do Primetime, três Writers Guild of America, dois Critics’ Choice Television Awards e um Screen Actors Guild Award.

Poderia se dizer que Better Call Saul seja tão boa ou até melhor que a série original.

Vários personagens icônicos que aparecem aqui foram gestados em Breaking Bad, como Tuco Salamanca, Hector Salamanca, Gustavo Fring e Mike Ermantraut. Todos eles tem suas histórias destrinchadas com mais detalhes e são enriquecidos com mais camadas, especialmente Mike.

Há também os personagens originais da série como Chuck McGuill, Kim Wexler, Howard Hamlin e Nacho Varga, que são tão bons quanto os já citados.

No entanto, a grande estrela do show é, sem dúvida, Jimmy McGuill, o Saul Goodman.

Apesar da série ter 6 temporadas, o desenvolvimento do personagem principal pode ser dividido em 3 partes assimétricas.

A primeira (e maior) parte vai da primeira temporada até o último episódio quarta, que é basicamente o processo de transformação de Jimmy McGill em Saul Goodman.

A segunda parte é a quinta temporada inteira até o penúltimo episódio da sexta-temporada, onde Jimmy McGill sofre as consequências desta transformação.

A terceira parte é o último episódio da sexta temporada, que é a redenção de Jimmy McGill e a morte de Saul Goodman.

Toda essa assimetria não configura um desatino de roteiro, mas algo que reforça o próprio tema de toda série: a redenção cristã.

No entanto, antes da redenção, vamos avaliar primeiro essas 3 seções narrativas da jornada do personagem,

Como foi dito, a primeira seção (que vi da primeira a quarta temporada) pode ser descrita como o nascimento de Saul Goodman.

Vamos definir a relação Jimmy McGuill e Saul Goodman na mesma dinâmica do duplo metamórfico consolidado por Robert Louis Stevenson em Dr. Jekyll e Mr. Hide (o médico e o monstro). Algo que também estava presente em Breaking Bad na relação Walter White e Heisenberg.

Nas duas primeiras temporadas de Better Call Saul vemos o processo metamórfico acontecendo e percebemos as nuances de sua transição, que são pontuadas por fases mistas.

Jimmy ainda não é “Saul Goodman”, mas também não é o “James A. McGill” que gostaria – ele está numa fase de transição – em algum lugar cinzento entre ser alguém que quer fazer a coisa certa, sendo um infeliz e medíocre advogado de “direito geriátrico” – ou ser ele mesmo (ou o que ele acreditar ser “ele mesmo”) – um trapaceiro formidável.

O resumo é o seguinte: Jimmy tentou ser uma pessoa correta. No entanto, sua natureza ladina e o ceticismo das pessoas ao seu redor, que desacreditaram nele nesse processo de mudança, o fizeram caminhar cada vez mais convicto à sua solerte persona: a do sacana decidido.

Chuck McGuill

Durante esse processo, vemos que a civilidade de Jimmy é ancorada pela sua relação com seu irmão, Chuck McGuill.

Enquanto nas duas primeiras temporadas vemos basicamente Jimmy no caminho de uma reorientação de sua perspectiva moral, na terceira, o foco parece dar mais atenção a sua relação com o irmão.

Chuck é uma figura importante no desenvolvimento da personalidade de Jimmy.

Seu herói, seu irmão e seu inimigo.

Chuck é um advogado de sucesso que administra seu próprio escritório de advocacia, Hamlin, Hamlin, & McGill (HHM), com o parceiro de negócios e amigo Howard Hamlin.

No entanto, ele é semi-recluso e acredita que sofre de hipersensibilidade eletromagnética.

Chuck, em si, é uma figura extremamente complexa e ambígua. Há, nele, ao mesmo tempo, amor fraterno e desprezo pelo irmão – assim como uma ambivalente relação entre inteligência e doença mental.

Chuck e Jimmy podem ser opostos, mas ambos compartilham um drama de ambivalência.

Chuck é incapaz de aceitar o arrogo de uma mente que seja capaz de vencer pleitos jurídicos formidáveis, adquirir uma cultura assombrosa e que também, ao mesmo tempo, seja também capaz de lhe pregar peças, inventar doenças inexistentes e colocá-lo em situações ridículas e vexatórias.

A ruína de Chuck na terceira temporada é refletida também numa certa ascensão de Jimmy McGill – na premiação da inteligência ladina de Jimmy contra a inteligência tradicional do irmão.

A cena de Chuck destruindo sua casa no ultimo episódio da terceira temporada é um dos espetáculos mais deprimentes de toda a série.

A morte do irmão, apesar de trágica e sentida pelo personagem principal, o libertou de qualquer ideia de compromisso de dívida que ele pudesse ter com o mundo. Foi sua carta de alforria.

Na quarta temporada, vemos que a transformação de Jimmy McGill em Saul Goodman acontece de forma acelerada: mais cínico, mais manipulador e mais desavergonhadamente envolvido com criminosos e ações ilícitas.

Os conflitos morais aqui são diluídos. Jimmy tem uma relação mais uniforme com sua canalhice, como se já tivesse aceitado de vez esse incorrigível traço de sua personalidade.

Sua postura atua como um manifesto da sua filosofia distorcida, que divide o mundo entre “lobos e ovelhas”, cabendo as pessoas decidirem em qual lado vão estar. Ele já escolheu o lado dele.

As Consequências

Como foi dito, as quatro primeiras temporadas mostraram “a causa”, a quinta mostra “a consequência” do caminho escolhido pelo personagem principal.

Jimmy, agora “amigo do cartel”, está preso e envolvido no tentacular negócio do narcotráfico. Uma rede complexa que envolve grandes esquemas de logística, empresas de fachada, bocas e delegacias corruptas.

Um mundo que exige uma compulsória e inescapável “troca de favores”.

Para Jimmy, acabou o prazo de validade para avaliar riscos ou reaver uma consciência moral. A única forma de sair disso é morrendo ou sendo preso.

A situação só piora quando vemos que Jimmy forçosamente arrasta Kim Wexler para o mesmo abismo e ela, fatigada da segurança e da retidão careta das normas do império da lei e da civilidade, apaixonada pela adrenalina (que era visivelmente reprimida nas temporadas anteriores) e, também, apaixonada por Jimmy, resolve assumir de vez seu papel de cúmplice – uma espécie de romantismo Bonnie e Clyde.

Não há mais em Jimmy aquele sorriso ladino. Ele está apavorado. Seu encontro mais brutal com o núcleo do narcotráfico foi no meio de um tiroteio – nada poderia ser mais traumático. Extremamente mais tenso que sua experiência no deserto com Tuco.

Ao arrastar Kim para esse mundo, sua tensão aumenta pois suas escolhas perigam, como ele bem sabe, de trazer grande risco para a única pessoa que, aparentemente, ele conseguiu amar (fora Chuck).

A Redenção

A sexta e última temporada de Better Call Saul fecha o circuito de crimes de Jimmy McGill e abre outro de confissões e penitências.

No último episódio da última temporada, Jimmy McGill assume seus pecados e vai ao encontro do seu adequado e devido castigo.

A penitência que Jimmy impôs a si mesmo no último episódio, sem perder o bom humor que lhe é típico, é a melhor tradução do disse São João Cisóstomo sobre penitência:

“A penitência impele o pecador a suportar tudo de boa vontade. Em seu coração está o arrependimento; em sua boca, a acusação; em suas obras, plena humildade e proveitosa satisfação”

Essa “proveitosa satisfação” que Jimmy McGill experiencia não tem a ver com conforto, não tem a ver com o “se dar bem”, mas a pura satisfação de fazer o que deveria ser feito.

No fim, temos a história de uma redenção cristã. Sim, aquela redenção que até hoje escandaliza e deixa o mundo perplexo. A redenção que sinaliza a estranha economia da salvação, pois é uma redenção que não quantificando os crimes – mas qualificando a disposição do penitente para pagar por eles.

No final, durmam com essa: Jimmy McGill é um bom homem, um “Goodman”.

Como bem diria G.K. Chesterton, nenhum homem é, de fato, bom, enquanto não souber quão mal ele é, ou poderia ser.

 

 

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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