O Sentido da História

O livro “O sentido na história: implicações teológicas das filosofias da história”, do filósofo Karl Löwith, traz um paralelo entre interessante entre a filosofia da história leiga e a filosofia da história teológica ou mítica.

Na época em que ele escreveu, 1940, a filosofia da história leiga se encontrava numa crise ante aos questionamentos atinentes aos conflitos mundiais.

Era muito comum as filosofias leigas da história, sejam elas influenciadas pelo marxismo ou o liberalismo, imaginarem que, a determinadas condições econômicas, a determinadas condições específicas de “temperatura e pressão” (como costumam dizer), haveria algo como “o fim da história”, enquanto a filosofia da história teológica a humanidade encontraria uma finalidade “no mistério”.

Diferente das filosofias leigas que definiam o fim do trajeto humano em um futuro possível, dentro da própria história humana, o fim na “teologia histórica” estaria no ‘reencontro dos homens com o Criador’.

Expulsamos Deus da academia, abandonamos o sentido místico da história, mas não abandonamos a ideia de sentido.

No lugar de Deus, colocamos as ideologias, e toda nossa história se orienta conforme a certos recortes temáticos econômicos ou culturais.

No final das décadas de 1980  foi decretado “o fim da história” por Francis Fukuyama.

Esse “decreto” foi visto como a expressão máxima do triunfo liberal na história, e também uma expressão de soberba ideológica triunfalista.

Esse triunfalismo foi motivado, principalmente, pelos acontecimentos políticos e econômicos em processo no período, como o desmonte econômico e político da União Soviética e a revelação dos seus inumeráveis crimes.

O liberalismo, apesar das críticas, se provava economicamente mais eficiente e, pela primeira vez, moralmente superior ao comunismo. Embora isso ainda hoje seja pauta de discussão intensa.

A sobrevivência dos comunistas mais ortodoxos, ainda hoje muito presente, se materializa em figuras religiosamente apegadas a uma ideologia que se provou não apenas errada, mas violentamente desastrosa.

Aos menos ortodoxos, é cada vez mais comum o abandono de pautas econômicas e o foco em pautas culturais e identitárias (gênero, sexo, raça) – tão descaracterizados hoje dos antigos comunistas que muitos nem se consideram como tal.

Enquanto isso, embriagados pela vitória econômica, a tendência dos liberais foi ignorar questões culturais e se focar naquilo que lhes deu a impressão de uma vantagem histórica incontestável: a economia. É basicamente só isso que se discute nos meios liberais (até hoje).

No entanto, o conceito de “fim da história” teve outro abalo sísmico não esperado: o 11 de Setembro de 2001.

Os ataques terroristas aos Estados Unidos revelaram outra grande força política, que sempre esteve lá e que ninguém prestou muito atenção. Uma força política que crescia debaixo do nariz de todos: o terrorismo islâmico.

Para o terrorismo islâmico, pouco importa a utopia de um modelo econômico pretensamente livre ou a utopia de um modelo econômico pretensamente igualitário. Sua ação se baseava numa missão sagrada e sua recompensa ultrapassava as insignificantes contingências dessa vida. Era atemporal, celeste, transcendente e sagrada.

O terrorismo islâmico trouxe de volta o sentido místico de guerra.

De repente, voltamos a falar sobre Deus, sobre as Cruzadas, sobre “o Grande Satã”, entre outros termos que pareciam estar adormecidos no século XVI.

É certo que, desde que os homens e as sociedades se tornaram conscientes de sua existência, buscou-se interpretar (de forma materialista ou mística) não apenas de onde se originaram, mas também, e ainda com mais afinco, para onde caminharão.

Em outras palavras, sempre se procurou responder as seguintes indagações: para onde caminha e caminhará a humanidade? Qual o sentido (se é que possui algum) dos processos históricos e para que serve a História?

Isaac Asimov brincou um pouco com esse conceito de “sentido da história” em seu épico Fundação, onde esse sentido seria algo decifrável matematicamente na “psico-história” (falo um pouco disso no episódio Isaac Asimov, Fundação e o “Sentido da História” do Taverna do Lugar Nenhum).

Karl Marx ironizou a presença de alguns ciclos históricos na abertura do seu livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, ao dizer que a história “se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa”.

Outro filósofo que comenta sobre a história é Remo Bodei, em sua obra “A história tem um sentido?” quase que respondendo diretamente o livro de Karl Löwith, mencionado no início desse artigo), que problematiza formalmente este conceito.

O problema para Bodei é que o sentido da história está intimamente ligado aos critérios valorativos de pontos de vistas específicos que não são universalmente consensuais.

O sentido da história, no caso, fica reduzido a uma questão de opinião, muito distante dessa noção matemática-científica-exata de progressão.

A história seria em algumas análises algo muito mais artístico do que científico. É quase sempre uma narrativa literária com alguns dados escolhidos a dedo pelo historiador para enfeitar sua obra com verniz de credibilidade científica.

Eric Hobsbawm (mas não só ele) fez muito isso. Seus livros são muito mais parecidos com literatura do que com história, propriamente dito.

O sentido da história, decorrente dessa construção narrativa, é composto da mesma forma que qualquer romance o é.

Bodei explica que ver um sentido na história se tornou algo até mesmo religioso: “hoje são poucos os que crêem, por raciocínio e não por fé, que a história tenha um sentido (…) [pois as filosofias da história] revelaram-se todas falazes e a linha que deveria ter ligado os acontecimentos durante uma sequência orientada foi rompida”.

Se não conseguimos nos desapegar da ideia de sentido, da bússola escatológica do cristianismo (macaqueada em Karl Marx), seria mais lógico e saudável assumir ou o sentido místico da história considerando a providência divina (ou seja, algo indeterminado e inacessível a qualquer ser humano ou concepção ideológica) ou no completo caos do porvir (que, ironicamente, seria igualmente indeterminado e inacessível a qualquer ser humano ou concepção ideológica), diminuindo nossa pré-disposição a mimetizar os grandes profetas do Antigo Testamento.

 

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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