O “um” e o “todo”

Segundo os Vedas, o ser primeiro é impensável, ilimitado, eterno. Ele é, ao mesmo tempo, o “um” e o “Todo”, o “Criador” e “senhor” do mundo; alguns o identificam até com o Universo; outros o procuravam na “pessoa” (Purusa) presente no Sol, na Lua, na fala etc.; outros ainda no “ilimitado” que sustém o mundo, a vida e a consciência.

É interessante notar a sofisticação conceitual dada aos deuses na tradição védica, amalgamando conceitos opostos na composição paradoxal de “um-todo”. Essa ideia ressoa com a teoria do Big Bang, que sugere que o universo se originou da singularidade (um estado em que as leis da física, tal como as conhecemos, deixam de ser aplicáveis), implicando uma conexão primordial entre todas as coisas.

No upanixades em prosa, especificamente na Chandogya, Brahman (também conhecido como Prajapati), o deus criador, é descrito como sendo “o mundo inteiro” e, apesar disso, de natureza espiritual; “a vida é o seu corpo, sua forma é luz, sua alma é o espaço”; ele encerra em si todos os atos, desejos, odores, paladares etc.

Seu tamanho é descrito como “menor que um grão de cevada, menor que um grão de mostarda” e, ao mesmo tempo, “maior que a Terra, maior que a atmosfera, maior que esses mundos”.

Tal como o Purusa no Rig Veda, o Brahman revela-se, ao mesmo tempo, imanente (“deste mundo”) e transcendente, distinto do cosmo e, contudo, onipresente nas realidades cósmicas. Absoluto e relativo, espiritual e material, pessoal e impessoal etc.

Além disso, em cada pessoa, ele se assume como “atman”, essência imutável e eterna do ser individual, muitas vezes associada à ideia de alma ou consciência universal.

Ele habita o coração do homem, implicando uma conexão direta entre o “eu” e o “universal”.

Como os upanixades possuem orientação soteriológica gnóstica (não no sentido cristão de gnose), por ocasião da morte, o atman “daquele que sabe” se une ao Brahman; as almas dos outros, dos “não-iluminados”, seguirão a lei da transmigração (samsara), o ciclo contínuo de nascimento, morte e renascimento das almas, onde cada existência é influenciada pelas ações (karma) acumuladas em vidas anteriores.

Há várias teorias distintas sobre a pós-existência na tradição védica, bramânica e upanixádica. Segundo algumas vertentes, aqueles que compreenderam o simbolismo esotérico dos “cinco fogos” (Pancagni Vidya¹) atravessam as diferentes regiões cósmicas até o “mundo do relâmpago”.

No contexto do Pancagni Vidya, o “mundo do relâmpago” geralmente se refere a uma realidade transitória e efêmera, simbolizando a natureza ilusória do mundo material. Ele representa a rapidez e a imprevisibilidade das experiências sensoriais, que podem ser comparadas ao brilho intenso e passageiro de um relâmpago. Esse conceito convida à reflexão sobre a impermanência da vida e à busca por uma compreensão mais profunda e duradoura da realidade espiritual.

É lá que eles encontram a “pessoa espiritual” (purusa manasah, isto é, aquele “nascida do espírito”) e esta nos conduz até os mundos de Brahman, onde viverão pela eternidade e não retornarão mais.

Enquanto a mente do purusha busca a verdade eterna e imutável, o mundo do relâmpago simboliza a natureza efêmera das experiências sensoriais e das distrações da vida cotidiana. Essa contrapartida enfatiza a importância de transcender as ilusões passageiras e acessar a consciência superior para alcançar um entendimento mais profundo da realidade espiritual.

Segundo outras interpretações, a união, depois da morte, do atman com o ser universal (Brahman) constitui, de alguma forma, uma “imortalidade pessoal”: o “eu” confunde-se em sua fonte original, a “partícula” se dissolve no todo, em Brahman, Prajapati, em suma, no deus da criação.

A ideia de “um” e “todo” também está em São Tomás de Aquino.

Em sua obra “Suma Teológica”, fala sobre a relação entre essência e existência, sugerindo que a realidade de um ser é mais do que a mera soma de suas partes.

Ele argumenta que a unidade de um ser é uma propriedade essencial que não pode ser reduzida apenas à soma dos seus fragmentos. Um organismo, por exemplo, não é apenas a soma de suas células; sua unidade funcional e a interação entre as células criam um ser vivo que possui propriedades únicas.

Essa noção não é apenas evidente do ponto de vista filosófico e teológico, mas também é uma realidade psicológica; a teoria da Gestalt enfatiza que os seres humanos percebem padrões e formas inteiras antes de analisarem suas partes individuais. Essa ideia sugere que a compreensão e a percepção de um sistema ou conjunto são diferentes e mais complexas do que simplesmente a adição dos elementos que o compõem.

¹ Pancagni Vidya, ou “O Conhecimento dos Cinco Fogos”, explora a interconexão entre o ser humano, o universo e a busca pelo conhecimento espiritual. As “cinco fogueiras” representam diferentes aspectos da existência que se inter-relacionam e são essenciais para compreender a realidade espiritual: o fogo do corpo, que simboliza a vida física e as experiências sensoriais; o fogo da respiração, que se refere à energia vital (prana) que anima o corpo; o fogo do pensamento, relacionado à mente e às emoções; o fogo do desejo, que diz respeito aos anseios e motivações que impulsionam as ações; e, por fim, o fogo do Ser (Atman), que representa a essência do eu e a conexão com o divino.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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