Antes de ler Eliade eu tinha uma suspeita que o entendimento mais primordial de um religioso em relação as suas próprias crenças sagradas é completamente diferente do que se tem hoje.
Não é um entendimento “simbólico”, “metafórico” – que poderia descarrilar numa espécie de ateísmo prático, reduzindo a religião como um instrumento de pedagogia moral floreada com histórias fantásticas.
Tão pouco é um entendimento plenamente literal, pois todo mito tem estruturalmente uma dimensão artística.
Todo gesto ritual, por exemplo, é a teatralização de algum evento cósmico significativo: exige papéis, roteiros, incorporações e cenários.
O entendimento mais primordial, segundo Eliade, não diferencia símbolo e matéria (ou verbo e carne, no entendimento cristão), ao passo que um sacerdote babilônico tinha tanto a plena convicção de que Marduk lutou de fato contra uma Serpente Marinha, num tempo cósmico distante, quanto entendia que essa luta simbolizava o “princípio da Ordem” se sobressaindo sobre o “princípio do Caos”.
Cristo se intercambiava em homem, Deus, cordeiro, pão e vinho pois todas essas coisas definiam tanto o que Ele era quanto o Ele representava.
Por isso um católico soa maluco quando diz que a eucarístia é LITERALMENTE corpo e sangue de Cristo.
O mito, segundo Eliade, é solidário da ontologia.
O problema da modernidade não é apenas que ela segmentou a compreensão humana do universo, mas tornou esses segmentos irreconsciliáveis: ao passo que o cientista, o poeta, o agricultor e o sacerdote são tragicamente pessoas diferentes.
Imagem: Serpente Marinha de Orlando Furioso, Gustave Dore.