Ao chegar no Japão, os visitantes são imediatamente imersos em uma cultura vibrante, repleta de referências a ícones como Super Mario, Pokémon, Astro Boy e Godzilla. Esses elementos não são meramente entretenimento; eles refletem uma identidade nacional profundamente conectada com heróis fictícios e monstros que simbolizam tanto a resiliência quanto os traumas do passado. Curiosamente, apesar dos horrores dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki, o tema da destruição ficcional de Tóquio é recorrente na cultura japonesa. Para entender esse fenômeno, é essencial explorar as raízes da indústria cultural do Japão e como ela se desenvolveu no pós-guerra.
O Japão Moderno
Para compreender a identidade do Japão moderno, é crucial revisitar os momentos fundacionais que moldaram o país após a Segunda Guerra Mundial. Em 2 de setembro de 1945, o Japão se rendeu às forças aliadas, deixando a nação em ruínas. Com baixas significativas, infraestrutura devastada e o desmantelamento do mito da divindade do imperador, o país enfrentou o desafio de se redefinir sob a ocupação aliada.
Nesse período de escassez material e incerteza, surgiu um símbolo inusitado de resiliência: os brinquedos. Utilizando latas de conserva das tropas aliadas, artesãos japoneses criaram jeeps de brinquedo, que rapidamente chamaram a atenção dos soldados americanos. Esses brinquedos baratos e inovadores não apenas se tornaram as primeiras mercadorias de exportação do Japão pós-guerra, mas também marcaram o início de uma recuperação econômica lenta, porém significativa.
Todos os produtos exportados na época eram obrigados a carregar o rótulo “Feito no Japão Ocupado”, um lembrete do status do país. No entanto, essa atividade de exportação foi crucial. Ela não apenas inseriu o Japão no mercado global, mas também simbolizou um ciclo de consumo onde materiais americanos eram transformados em produtos japoneses, gerando recursos vitais para a população.
Atomic Robot e Godzilla
O “jeep” de brinquedo foi apenas o início. Novos brinquedos começaram a incorporar temas do pós-guerra, como o Atomic Robot, cuja embalagem lembrava a icônica nuvem em forma de cogumelo das explosões atômicas. Esse robô não apenas refletia o trauma nuclear, mas também antecipava a ênfase tecnológica que o Japão adotaria nas décadas seguintes. A tecnologia, vista como fundamental para a vitória dos Aliados, tornou-se um objetivo nacional, substituindo a ambição de um império pelo Pacífico pela busca da prosperidade material e de um estilo de vida ocidental.
Essa transição é exemplificada no filme “Gojira” (Godzilla), de 1954. A história gira em torno de um monstro despertado por testes nucleares americanos no Atol de Bikini, que dirige sua fúria contra Tóquio. No final, é a invenção tecnológica de um cientista japonês, o “Destruidor de Oxigênio”, que salva a cidade da destruição. O filme reflete o medo do poder nuclear, mas também a crença na tecnologia como solução. Além disso, Godzilla é retratado mais como um desastre natural do que como uma consequência direta das ações humanas, o que pode ser visto como uma forma de aliviar o fardo dos crimes de guerra cometidos pelo Japão durante a Guerra do Pacífico.
Astro Boy
Enquanto o cinema explorava temas de destruição e reconstrução, a indústria dos mangás e animes começava a florescer, com Tetsuwan Atomu (Astro Boy) como um de seus primeiros ícones. Criado por Osamu Tezuka em 1951, Astro Boy é a história de um robô criança construído por um cientista enlutado que não consegue substituir seu filho perdido. Dotado de um espírito compassivo, Astro Boy luta por justiça e direitos para os robôs, simbolizando uma nova geração de japoneses que rejeitavam o autoritarismo de seus pais.
Astro Boy também reflete os traumas do pós-guerra. Seu gerador atômico, embora seja um símbolo de reconstrução, paradoxalmente o torna um órfão, rejeitado por seu criador. Essa narrativa ressoa com a experiência de muitos jovens japoneses que cresceram sem seus pais, seja devido às perdas da guerra ou ao afastamento de um legado autoritário. Astro Boy não apenas se tornou um ícone cultural, mas também ajudou a estabelecer a indústria de action figures, que se espalhou pelo mundo.
Compulsão à Repetição
A influência de Godzilla e Astro Boy catalisou um boom na indústria do entretenimento japonês, mas o trauma da guerra nunca foi completamente esquecido. Filmes como “Cemitério dos Vagalumes” (1988), do Studio Ghibli, abordam diretamente a luta pela sobrevivência no pós-guerra, enquanto animes como “Akira” (1988) e “Jin-Roh” revisitam temas de destruição e ocupação de forma mais indireta.
Por que a sociedade japonesa continua a explorar sua própria destruição ficcional? Uma possível explicação está no conceito psicanalítico de compulsão à repetição, proposto por Freud. Segundo essa teoria, os indivíduos (e talvez as sociedades) repetem experiências traumáticas como uma forma de processar e, eventualmente, superar o sofrimento. No caso do Japão, a recorrência de narrativas de destruição pode ser uma maneira de reexperienciar o trauma em um ambiente controlado, buscando um senso de autonomia e cura.
No entanto, nem toda produção cultural japonesa pode ser atribuída diretamente à guerra. A teoria freudiana, embora útil, deve ser aplicada com cautela. O que é inegável é que a cultura japonesa serve como um veículo para refletir sobre um passado desafiador, oferecendo um meio de lidar com traumas coletivos e redefinir a identidade nacional.
Conclusão
A cultura pop japonesa, desde os brinquedos pós-guerra até os blockbusters de monstros e os animes emocionantes, é um reflexo profundo da história e da psique do país. Através de ícones como Godzilla e Astro Boy, o Japão não apenas enfrentou seus traumas, mas também redefiniu sua identidade em um mundo em transformação. Essas narrativas continuam a ressoar, lembrando-nos de que a cultura é tanto um espelho do passado quanto uma ponte para o futuro.
O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.