A.D. Police é uma série policial cyberpunk divida em 3 episódios, criada pelo estúdio ARTIMIC no Japão, sendo um spin-off da série Bubblegum Crisis.
A história acontece no futuro, por volta do ano 2032, após o Segundo Grande Terremoto de Kanto dividir geográfica e culturalmente Tóquio em dois.
A disparidade de riquezas dessas duas regiões, que já eram evidentes antes do terremoto, é geograficamente reforçada.
A ideia de uma cidade dividida em dois é uma imagem significativa considerando a época em que o anime foi feito – o final dos anos 80.
A Guerra Fria, tal como o Segundo Grande Terremoto de Kanto no anime, separou o mundo em dois polos geográficos e culturais antagônicos.
Embora o cyberpunk se apresente normalmente como uma distopia pós-capitalista, onde a questão da divisão de classes e a desigualdade é sublinhada a todo momento nas entranhas de sistemas políticos controlados por corporações globais em associação com o Estado, a cisão geográfica e cultural de uma cidade neste anime pode muito bem ser associada ao que acontecia na Alemanha naquele tempo, especialmente em Berlim, onde um muro dividia o mundo socialista do mundo capitalista (e é comum no Cyberpunk a crítica de ambos os regimes).
Neste cenário tipicamente Cyberpunk, uma corporação de imenso poder e influência global chamada Genom começa a produzir os boomers, que são formas de vida cibernéticas humanoides.
Os boomers tem como objetivo servir a humanidade, mas se tornam instrumentos mortais nas mãos de indivíduos cruéis.
O A.D. Police tem a tarefa de lidar com crimes relacionados aos boomers rebeldes, que apresentam algum perigo para a humanidade.
Primeiro episódio: A Mulher Fantasma / Loucura Boomer
Uma boomer feminina perde o controle e ataca seu dono numa pequena casa de chá centro da cidade e precisa ser contida pelo esquadrão especializado A.D. Police.
Tendo obtido a permissão do dono, o comandante do esquadrão da A.D. Police ordena que a androide seja destruída por um pelotão de fuzilamento especializado.
Mais tarde, enquanto o time lamenta por Alles (um dos soldados mortos no combate com essa boomer), um oficial administrativo questiona a legitimidade da morte deste androide.
Ele diz que, após algumas investigações, não foram encontradas falhas na programação da boomer.
Ele diz que Alles conhecia a boomer que o matou, frequentava a casa de chá regularmente e teoriza que ele havia adulterado ela para matá-lo, para que sua família pudesse cobrar uma grande apólice de seguro de vida.
Leon e Gina (os dois protagonistas desta história) discordam dessa afirmação e pretendem provar que ela está incorreta.
Eles se propuseram a mostrar que outros boomers locais também esconderam falhas e que podem revelar um grande mercado negro de androides.
Ambos fazem uma visita a um hacker conhecido de Gina que é capaz de fornecer a eles uma lista de possíveis usuários que reciclaram ilegalmente boomers antigos e desativados.
Enquanto isso, eles são perseguidos por uma mulher desconhecida, que revela ser a boomer pertencente a Leon, que foi desativada e depois reciclada ilegalmente.
Gina e Leon se separaram para seguir pistas diferentes nas operações de reciclagem de boomers.
Depois de interrogar um obscuro proprietário de uma fábrica, Gina descobre que o boomer original reciclado fazia parte de um negócio clandestino de tráfico sexual.
Leon é perseguido por sua boomer, mas não a reconhece, toma-a por uma prostituta comum.
A boomer começa a fantasiar eroticamente sobre Leon matando-a novamente, fica louca de sede de sangue e o ataca, esperando que ele a mate.
Na luta que se seguiu, Leon é ferido e fica sem balas.
Quando a boomer psicótica está prestes a matá-lo, Gina chega e o salva.
O episódio termina com Leon questionando se os humanos têm um lugar na cidade ou se ela pertence aos boomers.
O primeiro episódio de A.D. Police já mostra impressionantes camadas de discussões envolvendo traumas e sexualidade.
A boomer que persegue Leon correlaciona caoticamente em si sexo e violência num impulso erótico de autodestruição, antecipando em décadas o que Lars Von Trier apresentaria em Ninfomaníaca.
Além de tudo, temos questões subjacentes ao mundo cyberpunk sendo discutidas como a marginalização social e um submundo complexo de uma economia subterrânea baseada em sexo e violência.
As influências de Blade Runner e a descartabilidade social de policiais e prostitutas
A primeira coisa notável em A.D. Police são as claras influências de Blade Runner: O Caçador de Androides. Tanto na concepção estética quanto na concepção do próprio roteiro.
Os androides em A.D. Police se tornaram parte integrante da sociedade, sendo incorporados tanto no ramo da prostituição como na polícia – preenchendo nossas demandas básicas de segurança e satisfação sexual.
É interessante notar o nível subliminar de discussões profundas que podemos tirar disso – onde policiais e prostitutas são comparáveis em suas funções de uso e descarte pela sociedade, que extrai deles toda sua individualidade e humanidade (tornando-os metaforicamente mecânicos) para que as tensões do caos em nosso quotidiano não se evidenciem à luz do dia.
A partir do momento em que estes androides não se comportam como deveriam, o caos (que sempre esteve lá), ressurge.
Segundo episódio: O Estripador / O Loop do Paraíso
Após um assassinato horrível no metrô em uma área chamada Paradise Loop (Loop do Paraíso), a A.D. Police intervém para ajudar a encontrar o assassino quando a polícia comum não parece estar à altura da tarefa.
Um total de seis prostitutas foram encontradas assassinadas nesta linha de metrô e suspeita-se que o trabalho seja feito por um boomer.
Dois oficiais da polícia normal, Iris Kara e seu parceiro, duvidam que o assassino seja um boomer e são escalados neste episódio para ajudar a encontrar o assassino e levá-los à justiça.
Embora todas as vítimas compartilhem a mesma punhalada no abdômen, elas morreram de parada cardíaca ou choque.
Iris vai ao banco de órgãos para substituir seu olho por um cibernético e se depara com Leon, que a conhece desde seu tempo como policial regular.
Leon tenta dissuadi-la da cirurgia, dizendo que ela perderá parte de sua humanidade se o fizer. Iris ri disso.
Mais tarde, durante uma consulta com o médico, ela ouve uma discussão iniciada por outra cliente, a Sra. Caroline Evers, uma bilionária e magnata dos negócios.
Iris tem um palpite de que Caroline está de alguma forma ligada aos assassinatos e pede a Leon e Gina para ajudá-la a segui-la.
Eles rastreiam Caroline até um distrito industrial abandonado sob o qual Paradise Loop funciona.
Depois de mais investigações, Iris descobre que Caroline teve toda a parte inferior de seu corpo substituída por cibernética, pois ela, como mulher, não queria que os ciclos naturais do seu corpo (como os ciclos menstruais) atrapalhassem seu desempenho profissional.
O feminino e a sociedade do desempenho
Existem discussões interessantes neste episódio que vão desde o transhumanismo até as implicações do conflito entre corpo feminino e uma sociedade orientada ao desempenho profisssional.
Os níveis de discussão a respeito dos ciclos ctônicos naturais femininos e o desempenho de uma sociedade mecanizada e orientada para produtividade, além de ser uma pedra no sapato de teóricos que dogmatizaram a disparidade entre homem e mulher sendo apenas uma mera questão cultural, sempre tiveram presente em pensadoras como Camile Paglia.
Existe um aspecto dramático na figura de Caroline que dialoga perfeitamente com o pensamento de Paglia, que diz que para a mulher se submeter ao grande ideal de desempenho e performance profissional exigido socialmente (que ela erroneamente relaciona a felicidade e liberdade), ela precisou mutilar sua natureza em um nível traumático e irreversível.
Terceiro episódio: O homem que morde a língua / Eu quero remédio
Neste episódio acompanhamos Billy Fanword, capitão do Esquadrão Móvel Especial da A.D. Police.
Depois de sofrer ferimentos graves durante uma luta com um boomer e quase morrer, seus únicos órgãos viáveis restantes – seu cérebro e língua – são transplantados para um corpo ciborgue de batalha experimental.
Billy tem o hábito de morder a língua, pois a dor o faz lembrar que ele já foi humano.
Depois que Billy destruiu um boomer em um tiroteio, com um desempenho não tão aceitável, surgiram preocupações sobre suas habilidades de combate.
A médica que criou seu corpo o culpa por aquilo que considera um desempenho degradante, mas sua colega argumenta que, como ele não é um ciborgue completo, seu desempenho é afetado por questões emocionais.
Ela sugere que as memórias de Billy sejam apagadas para melhorar seu desempenho.
É revelado que a médica desenvolveu uma atração sexual doentia por Billy e decide aumentar sua dosagem de DA-27, um estimulante sensorial, para que ele seja mais receptivo às aberturas dela.
Billy fica viciado na droga e fica cada vez mais agressivo.
Suspeitando que algo está errado, Gina, sua ex-amante, confronta a cientista e a acusa de tê-lo viciado intencionalmente.
A cientista rejeita a acusação, dizendo que Billy está simplesmente voltando ao normal.
Gina discorda, dizendo que ela pode sentir que ele mudou.
Enquanto a cientista tenta livrar Billy do DA-27, ele fica furioso e tem alucinações.
Ele obtém DA-27 de uma fonte ilícita para continuar se drogando sem a permissão do cientista.
Depois de descobrir que ela planeja deixá-lo morrer no cumprimento do dever, uma vez que ela ganhe prestígio com a venda de seu design, ele se serve de uma grande dose de DA-27 que finalmente o faz perder o contato com a realidade.
Billy então mata a cientista quando ela vem para ver como ele está, e sai furioso pela delegacia da A.D. Police, atirando em muitos de seus camaradas.
Gina, que descobriu sua conexão com as drogas, chega com um rifle antitanque bem a tempo de impedi-lo de assassinar Leon.
Billy implora que ela o mate, dizendo que ele não pode sentir nada e que a dor o tornará humano novamente.
Como seu pedido final, ele pede a ela para atirar nele em sua língua. O episódio se encerra com Billy sendo enterrado no alto da estação, em seu cemitério.
Para quem já assistiu o clássico Robocop de 1987, soube identificar que a história de Billy se assemelha muito a de Murphy.
Além da problemática da descartabilidade policial, como já foi mencionada, as questões éticas, bioéticas e filosóficas pertinentes ao transhumanismo, que foram discutidas nos dois primeiros episódios de forma tangencial, atinge um outro patamar neste episódio.
Aqui estamos diante da discussão da humanidade em si.
Se tivéssemos todo nosso corpo substituído por órgãos mecânicos e artificiais e nos sobrasse apenas uma parcela orgânica, ainda poderíamos ser considerados humanos, ou nos transformaríamos máquinas?
Se conseguimos anestesiar nosso corpo de forma que não pudéssemos mais sentir dores, o que nos diferenciaria de objetos?
Se o seu corpo for 99,999% máquina, você não poderia ser tecnicamente considerado um robô?
Todas essas questões são pertinentes hoje, num mundo que atribui humanidade em critérios matematizáveis.
Em discussões como o aborto, por exemplo, o que define substancialmente a humanidade na comparação de um “feto” de 11 semanas e 6 dias, 23 horas e 59 segundos, de um bebê com 12 semanas completas – tempo limite do qual, em muitos países, o aborto não é mais permitido e o que era “feto” inexplicavelmente se transforma num ser humano com todos os seus direitos garantidos, incluindo o direito de existência?
Seria a dor física o que define o homem em sua dignidade de direitos? E o que podemos dizer das pessoas que nascem com doenças congênitas e são incapazes de sentir dor?
A única premissa aceitável que podemos conceder ao conceito de humanidade só pode ser guiado em um sentido metafísico ou espiritual – explicitamente dogmático. Qualquer coisa fora isso, na minha opnião, não passa de uma arbitrariedade tirânica e perigosa.
Conclusão
Imagine uma mistura de Akira, Blade Runner, Streets of Rage e Robocop.
A.D. Police é uma pequena série de três episódios sensacionais de 30 minutos, que consegue reunir e discutir uma infinidade assuntos interessantes e urgentes.
Uma das melhores e menos comentadas obras de ficção-científica de todos os tempos e um clássico absoluto do cyberpunk.