Os brâmanas, textos que acompanham os Vedas (as escrituras sagradas mais antigas da Índia), desempenharam um papel crucial na compreensão do desenvolvimento histórico, filosófico, simbólico e religioso da tradição hindu.
Enquanto os Vedas consistem principalmente em hinos e cânticos dedicados às divindades, os brâmanas se concentram na formalização dos rituais e cerimônias, oferecendo não apenas instruções práticas sobre como realizá-los, mas também explorando seus significados simbólicos.
Podemos afirmar que, enquanto os textos védicos revelam a dimensão poética originária da religião, os brâmanas delineiam suas deduções normativas.
Vale lembrar que eu sempre tomo esses termos como “simbólico”, “poético”, “espiritual”, “religioso” e “histórico” apenas pela necessidade de uma forma de aproximação didática. Sabemos que as sociedades tradicionais não costumavam ter uma visão tão fragmentada dos assuntos como temos hoje. História, ciência, filosofia, simbolismo, mitologia e religião eram, de uma forma geral, uma expressão mais homogênea da compreensão cosmológica, algo que todos já perdemos e possivelmente nunca mais iremos recuperar.
Além dos brâmanas, existem também os upanishads, que se tornaram conhecidos pelos estudiosos e curiosos dessas tradições — com perdão da possível inexatidão dos termos aqui empregados — como abordagens ainda mais filosóficas dos textos sagrados.
Na história da tradição hindu, eles são relativamente novos, surgindo entre os séculos VIII e II a.C., e representam uma transição do ritualismo védico dos brâmanas para uma abordagem mais contemplativa e especulativa da espiritualidade.
Com uma linguagem muitas vezes alegórica (resgatando o lastro poético védico original), os textos abordam questões existenciais e metafísicas, oferecendo reflexões sobre a relação entre as várias dimensões da realidade e explorando temas como a natureza da realidade, a natureza do eu e a relação entre o eu e o universo, a essência do ser, a verdade última e o caminho para a libertação.
Muitas vezes, essas reflexões parecem até mesmo desafiar noções aparentemente muito bem consolidadas da própria tradição em que se debruçam.
Mircea Eliade, em seu livro “A História das Ideias e das Crenças Religiosas”, afirma que, nos brâmanas, alguns deuses védicos foram aparentemente “desvalorizados” em benefício de Prajapati, o “senhor das criaturas” ou “criador dos seres” — o que deu abertura ao primeiro e aparente movimento de “desconexão” da tradição originária.
Os autores dos upanishads prolongam ainda mais esse aparente processo de “desconexão”.
Sendo mais filosóficos, os upanishads tornam o entendimento da tradição menos “supersticioso”, até mesmo em relação a elementos centrais e indiscutíveis da religião, como o sacrifício.
Alguns textos dos upanishads não hesitam em afirmar que, sem uma meditação sobre o Atman (o eterno e imutável, diferente do corpo físico e da mente, que são transitórios e sujeitos a mudanças), nenhum sacrifício é válido — ou seja, você pode seguir os ritos, as regras e as formas, mas isso não terá valor.
O sacrifício ritual deixa de ser visto como uma “fórmula” e passa a ser condicionado a um tipo específico de “erudição reflexiva”.
A “desvalorização” do sacrifício chega a ser extrema em alguns casos.
O Maitri Upanishad (ou Maitrayaniya Upanishad), por exemplo, afirma que aqueles que nutrem ilusões sobre a importância do sacrifício são dignos de lástima.
Obviamente, isso provoca uma intensa crise espiritual (e de identidade) na antiga religião hindu, pois, na tradição, Prajapati reconstrói e recupera sua “pessoa” (Atman) pela virtude do sacrifício. Da mesma forma, o sacrificante, por meio dos atos rituais (karman), “unificava” suas funções psicofisiológicas e construía seu “eu”.
Então, como assim o sacrifício não era importante?
E é aí que entra um certo (e até compreensível) mal-entendido.
A percepção mais analítica dos upanishads (pelo menos boa parte deles) não desabona a importância do sacrifício ou dos ritos, mas, digamos, “limita seu alcance”, uma vez que, provavelmente, eles, em determinado momento histórico, eram vistos como uma realização salvífica incontestável.
Nesse sentido, os upanishads servem para refinar os conceitos e as ideias gestadas nos brâmanas e Vedas, complementando-os com uma atividade meditativa, sem fugir do que já havia sido estabelecido.
As vezes em que eles pareciam ser incendiários (ou até iconoclastas) podem ser entendidas como uma espécie de pedagogia do escândalo.
Isso não é novo na história da religião e nem exclusivo das religiões hindus.
Uma das coisas mais interessantes sobre Cristo é que ele também causava uma espécie de escândalo, e sua aparente “heterodoxia” em relação às leis e costumes judaicos escondia não apenas uma profunda ortodoxia, mas ele era a própria realização encarnada das escrituras.
Para os upanishads, a centralidade do culto, do sacrifício e das orações (o relacionamento íntimo com os deuses) deveria dividir a atenção com outros tipos de ascese, como caridade, meditação e estudo.
Alguns termos, como samsara, que se tornariam muito populares no pensamento religioso e filosófico indiano, tanto ortodoxo quanto heterodoxo (como o budismo e o jainismo), surgiram nos upanishads.
No entanto, é sempre bom lembrar que esses termos têm suas bases nos Vedas e nos brâmanas, que já afirmavam, muitas vezes de maneira crítica e poética, o valor soteriológico do conhecimento.
À medida que a inteligência se refina, a relação com os ritos e com os textos antigos também deve se refinar em igual proporção. A “ignorância invencível” deixa de ser uma desculpa para a falta de comprometimento metafísico.
Assim como o entendimento mito-poético da tradição teve que ser complementado pelo formalismo da religião, o formalismo da religião teve que ser enriquecido pelas deliberações da filosofia.
Podemos concluir que toda tradição deve ser mantida por ser verdadeira, não por ser “antiga”.