Deus na Maquina: Transhumanismo, Antihumanismo e Religiões Biônicas

“O século 21 será diferente”, escreveu Russel Kurzweil em seu livro “A Era das Máquinas Espirituais.” “A espécie humana, junto com a tecnologia computacional que ela criou, será capaz de resolver problemas antigos (… ) e estará em posição de mudar a natureza da mortalidade em um futuro pós-biológico.”

Kurzweil, que agora é diretor de engenharia do Google e um dos principais proponentes de uma filosofia chamada transumanismo, tinha sua própria narrativa histórica. Ele dividiu toda a evolução em épocas sucessivas. Segundo ele, estamos vivendo na quinta época, quando a inteligência humana começa a se fundir com a tecnologia. Logo atingiríamos a “singularidade,” o ponto em que seríamos transformados no que Kurzweil chamou de “Máquinas Espirituais.” Transferiríamos ou “ressuscitaríamos” nossas mentes para supercomputadores, permitindo-nos viver para sempre. Nossos novos corpos se tornariam incorruptíveis, imunes a doenças e decadência, e nosso conhecimento seria colocado em nossos cérebros em uma espécie de software.

Segundo ele, ainda, a nanotecnologia nos permitiria refazer a Terra em um paraíso terrestre, e então migraríamos para o espaço, terraformando outros planetas.

Nossos poderes, em suma, seriam ilimitados.

Muitos transumanistas como Kurzweil afirmam que estão levando adiante o legado do Iluminismo — que a filosofia deles é baseada na razão e no empirismo.

Eles negam serem religiosos, mesmo que ocasionalmente caiam na linguagem metafísica sobre “transcendência” e “vida eterna.”

A maioria dos transumanistas hoje são ateus que acreditam no velho antagonismo caricato entre ciência e religião. “A maior ameaça à evolução contínua da humanidade”, escreve o transumanista Simon Young, “é a oposição teísta à superbiologia em nome de um sistema de crenças baseado na fé cega na ausência de evidências.”

No entanto, embora poucos transumanistas provavelmente admitam, suas teorias sobre o futuro são um resultado secular de uma escatologia religiosa. A palavra transumano apareceu pela primeira vez não em uma obra de ciência ou tecnologia, mas na tradução de Henry Francis Carey de 1814 do Paraíso de Dante, o livro final da Divina Comédia.

Dante, em um dado momento, completou sua jornada pelo paraíso e está ascendendo às esferas do céu quando sua carne humana é repentinamente transformada. Ele é vago sobre a natureza de seu novo corpo. “As palavras podem não falar dessa mudança transumana, ele escreve.

Dante, nesta passagem, está dramatizando a ressurreição, o momento em que os mortos ressuscitarão de seus túmulos e os vivos receberão carne imortal, através de um procedimento sobrenatural realizado pelo próprio Deus.

Longe das dramatizações especulativas de Dante, desde o período medieval, persistiu ainda no imaginário científico e esotérico a crença de que a humanidade poderia promulgar a ressurreição por meio da tecnologia. Os primeiros esforços desse tipo foram assumidos por alquimistas e clérigos. Diz-se que Roger Bacon, um frade do século XIII que é frequentemente apontado como o pai da ciência moderna, tentou desenvolver um elixir da vida que imitaria os efeitos da ressurreição conforme descrito nas epístolas de Paulo.

No final do século XIX, um asceta ortodoxo russo chamado Nikolai Fedorov foi inspirado pelo darwinismo para argumentar que os humanos poderiam direcionar sua própria evolução para trazer a ressurreição. Segundo ele, até este ponto, a seleção natural tinha sido um fenômeno aleatório, mas agora, graças à tecnologia, os humanos podiam intervir neste processo. Invocando profecias bíblicas, ele escreveu: “Este dia será divino, impressionante, mas não milagroso, pois a ressurreição será uma tarefa não de milagre, mas de conhecimento e trabalho comum.

Para ele, é como se Deus tivesse nos preparado para passar da condição humana para transhumana.

Essa teoria foi levada para o século XX por Pierre Teilhard de Chardin, um padre jesuíta francês e paleontólogo que, como Fedorov, acreditava que a evolução levaria ao Reino de Deus. Em 1949, Teilhard propôs que no futuro todas as máquinas seriam conectadas a uma vasta rede global que permitiria que as mentes humanas se fundissem. Com o tempo, essa unificação da consciência levaria a uma explosão de inteligência – o “Ponto Ômega” – permitindo que a humanidade “rompesse a estrutura material do Tempo e Espaço” e se fundisse perfeitamente com o divino.

O Ponto Ômega é um precursor óbvio da Singularidade de Kurzweil, mas na mente de Teilhard, era como a ressurreição bíblica aconteceria. Cristo, segundo ele, estava guiando a evolução em direção a um estado de glorificação para que a humanidade pudesse finalmente se fundir com Deus em perfeição eterna.

Os transumanistas normalmente reconhecem Teilhard e Fedorov como precursores de seu movimento, mas o contexto religioso de suas ideias raramente é mencionado ou creditado – embora, a todo momento, tudo o que a religião fornecia (mesmo na sua forma herética, gnóstica ou heterodoxa) fosse prontamente substituído por um pretenso equivalente científico.

Para se afastar de sua raiz esotérica, ocultista, religiosa, cristã, gnóstica – a maioria dos adeptos do movimento atribui o primeiro uso do termo transumanismo, no sentido que eles de fato desejam comunicar, a Julian Huxley, o eugenista britânico e amigo próximo de Teilhard que, na década de 1950, expandiu muitas das ideias do padre em seus próprios escritos – embora tenha se esforçado para afastar qualquer pista religiosa para soar relevante entre a academia, que até hoje padece de uma desespiritualização dogmática.

Huxley, um pretenso humanista secular, acreditava que as visões de Teilhard não precisavam ser baseadas em nenhuma narrativa religiosa maior. Em 1951, ele deu uma palestra que propôs uma versão não religiosa das ideias do padre. “Uma filosofia tão ampla”, ele escreveu, “que talvez pudesse ser chamada, não de Humanismo, porque isso tem certas conotações insatisfatórias, mas de Transumanismo. É a ideia da humanidade tentando superar suas limitações e chegar a uma fruição mais completa.

A iteração contemporânea do movimento surgiu em São Francisco no final da década de 1980 entre um grupo de pessoas da indústria de tecnologia com uma veia libertária. Eles inicialmente se autodenominavam extropianos e se comunicavam por meio de boletins informativos e em conferências anuais.

O termo extropia, concebido como um antônimo de entropia, vem sendo utilizado frequentemente na literatura acadêmica desde então. Talvez por coincidência, o termo foi usado em um livro acadêmico que discutia a criogenia e em outra publicação acadêmica datada de 1978 sobre cibernética. Diane Duane foi a primeira pessoa a usar o termo “extropia” para designar um destino transumano potencial à humanidade.

Desde então, foram criados jornais, institutos, ONGs e organizações educacionais destinadas a juntar pensadores transumanistas e espalhá-los pelas diversas áreas do conhecimento humano: inteligência artificial, nanotecnologia, engenharia genética, robótica, exploração espacial, memética e a política e economia.

O movimento foi ganhando destaque não apenas no meio acadêmico, mas também entre empresários e entusiastas da tecnologia.

Russel Kurzweil foi um dos primeiros grandes pensadores a trazer essas ideias para o mainstream e legitimá-las para um público mais amplo. Sua ascensão em 2012 para um cargo de diretor de engenharia no Google, anunciou, para muitos, uma fusão simbólica entre a filosofia transhumanista e a influência de grandes empresas de tecnologia.

Os transhumanistas hoje exercem enorme poder no Vale do Silício — empreendedores como Elon Musk e Peter Thiel se identificam como crentes desta “nova religião” — onde fundaram think tanks como a Singularity University e o Future of Humanity Institute. As ideias propostas pelos pioneiros do movimento não são mais reflexões teóricas abstratas, mas estão sendo incorporadas em tecnologias emergentes em organizações como Google, Apple, Tesla e SpaceX.

O que torna o movimento transumanista tão sedutor é que ele promete restaurar, por meio da ciência, as esperanças transcendentes que a própria ciência obliterou.

Os transumanistas não acreditam na existência de uma alma, mas também não gostariam de soar como materialistas estritos.

Para isso, transformam a ciência numa espécie de paródia da religião.

Kurzweil, por exemplo, afirma ser um “padronista”, caracterizando a consciência e supraconsciência (algo além da própria noção de consciência) como o resultado de processos quânticos e biológicos persisententes em “padrões”.” Esses “padrões,” que contêm o que tendemos a pensar como nossa identidade, estão atualmente sendo executados em “hardware físico” – o corpo – que um dia se tornará dispensável.

Os “padrões,” segundo os transhumanistas, não são o mesmo que uma “alma.” Mas não é difícil ver como o conceito de alma satisfaz o mesmo anseio. No mínimo, um “padrão” sugere que há algum núcleo essencial do nosso ser que sobreviverá e transcenderá a degradação inevitável da carne.

Mais do mesmo

Quando você estuda a história da Igreja Católica, especialmente as discussões sobre gnose e heresia, você não se impressiona muito com as novas discussões que são ventiladas pelo mundo moderno ou pós-moderno. Os filósofos de nossos tempos parecem apenas pegar velhos dilemas discutidos largamente nos caóticos pátios dos concílios e renomeá-los.

Percebam que toda a discussão proposta pelo transhumanismo não passa de uma espécie de catarismo cyberpunk. Temos a ideia de que haveria em nós uma essência imortal e superior (o “padrão”) que deveria ser libertada da prisão material do corpo (nosso hardware).

Tanto o “desprezo pela carne” quanto a ideia de trazer o “paraíso na terra” nunca foi uma ideia cristã, mas de seus inimigos mais fanáticos.  Aliás, de todas as ideias menos cristãs que já foram ventiladas, essas talvez sejam as mais blasfemas. A primeira por negar Cristo, que não era um vérbo etéreo pairando no éter, mas se assumia como carne. O desprezo pela carne é necessariamente um desprezo por Cristo. A segunda, pois nos coloca luciferianamente no lugar de Deus e únicos responsáveis pela nossa própria salvação.

Isso sem falar que algumas das vertentes do transhumanismo apoiam a eugenia.

Em um cenário que ecoa o “Admirável Mundo Novo” de Huxley, embriões seriam projetados com o objetivo de aprimoramento. Outros seriam destruídos. Todos nossa realidade seria planejada em laboratórios e o transhumanismo se tornaria não a superação soteriológica do ser humano pela divinização do sintético em detrimento do orgânico (que pra eles é maldito por ser perecível), mas a sua antítese –  o anti-humano.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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