Israel era uma confederação de tribos antes de se tornar um reino. Essa transformação ocorreu devido à influência dos anciãos, que solicitaram a constituição de um rei, “como todas as outras nações” (I Samuel 8:1-15). Até então, Israel reconhecia Javé como seu único e legítimo rei. Para que um homem pudesse assumir o título de rei, era necessário que ele “incorporasse o espírito de Javé” por meio da unção (mâsiah), tornando-se assim um representante de Deus na Terra.
Segundo Mircea Eliade, essa transição marcou uma das mais significativas gêneses do sincretismo de Israel. A vida pública e religiosa passou a se organizar de maneira semelhante à de outras nações, com preces em favor do rei, de sua glória e pelo exercício de sua justiça. O que inicialmente era visto com desconfiança acabou sendo celebrado, ainda que de forma crítica. No Salmo 110:4, o rei é descrito como o “sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque”, estabelecendo assim a identidade de rei-sacerdote.
Melquisedeque é uma figura enigmática que aparece em Gênesis 14:18-20. Ele era rei de Salém (mais tarde identificada como Jerusalém) e sacerdote do “Deus Altíssimo”. Ele abençoou Abraão e recebeu dele dízimos, sendo descrito como um sacerdote-rei, algo incomum, já que, na tradição israelita, as funções de rei e sacerdote eram rigidamente separadas. Esse resgate da figura de Melquisedeque pode ser entendido como uma estratégia identitária, permitindo que Israel assimilasse influências estrangeiras sem perder completamente sua integridade cultural ancestral.
A história de Israel é marcada por uma tensão constante entre identidade e cosmopolitismo. Curiosamente, Israel só se consolidou como nação ao se cosmopolitizar. Os templos, por exemplo, passaram a seguir modelos arquitetônicos estrangeiros, semelhantes aos palácios reais. O culto israelita também incorporou elementos emprestados de práticas cananeias. Ao longo do tempo, a identidade cultural de Israel foi se construindo por meio de fusões com outros povos. O culto das esposas estrangeiras de Salomão, por exemplo, legitimou a construção de santuários dedicados a outros deuses, incluindo estátuas tauromorfas, o que escandalizava os profetas.
Pela primeira vez, Israel experimentou os desafios e as complexidades de um reino. Suas cidades se expandiram e se embelezaram; houve prosperidade e abundância. O exército se organizou, e um senso de ordem foi estabelecido. No entanto, o reino também teve que lidar com conspirações, divisões (culminando na separação entre Israel e Judá), traições e o surgimento da política como um campo de disputas e alianças.
Os conflitos identitários, a tutela dos objetos sagrados (como a Arca da Aliança), o acesso ao santuário comum (como no caso de Jeroboão), a regulação da vida pública e privada, as leis, as revoltas, os massacres, a repressão, as ameaças estrangeiras, o estado de sítio, a espionagem, a polarização, a distribuição de bens, as contas públicas, a economia, a corrupção e todas as contradições que permeavam o reino são questões que ecoam até os dias de hoje.
Todo reino é, em essência, amaldiçoado e abençoado em igual medida. A história de Israel ilustra de maneira vívida como a busca por poder, identidade e sobrevivência pode gerar tanto grandiosidade quanto fragilidade, moldando o destino de uma nação.