Explicando o anti-erotismo nas obras de H.P. Lovecraft

Uma das formas de analisar um autor não é apenas observar os temas que ele aborda. Podemos analisar um autor também observando os temas que estranhamente nunca apareceram em seu universo literário.

No caso de H.P. Lovecraft, notamos as estranhas ausências do sexo e do dinheiro em sua extensa obra.

Como bem analisou Michel Houellebecq em seu livro “H.P. Lovecraft – Contra o Mundo, Contra a Vida”, não há nem sequer a menor alusão a esses dois assuntos no universo de H.P. Lovecraft, como se essas coisas não existissem.

Essa curiosa exclusão radical fez com que alguns críticos imaginassem os motivos que o levaram a excluir definitivamente esses assuntos dos seus livros.

A análise biográfica e literária se entrelaçam ao ponto dos críticos lançarem estranhas suposições do que estaria escondido nas entrelinhas dos mitos criados pelo cavaleiro de Providence.

Por alguma influência da modinha freudiana, que parece resumir todo aspecto humano ao sexo, alguns sugerem que a suposta ausência da vida sexual de H.P. Lovecraft se refletia em sua obra na forma de símbolos sexuais particularmente ardentes.

Alguns ainda sugerem que a escassez de personagens femininos era uma sinalização de uma “homossexualidade latente” – da qual ele não entendia ou se recusava a admitir.

Essas análises dizem mais sobre quem analisa do que sobre quem é analisado e só provam a incrível incapacidade da ótica freudiana em alcançar algo além do sexo.

A reclusão e o antierotismo de Lovecraft eram deliberados e conscientes de uma forma tão única que qualquer tentativa de enquadrá-lo numa caricatura freudiana vulgar só vai sinalizar ignorância em relação ao autor.

O que levou a sua persona a ser identificada com o que chamaríamos hoje de “incel” é apenas uma impressão errada e caricatural do que podemos extrair das diversas correspondências entre ele e seus admiradores.

Lovecraft recebia diversas cartas de jovens escritores que estavam vivendo uma obsessão realista que incluía “se libertar das afetações de virtudes vitorianas”. Nessa época, para os escritores, elencar obscenidades era um traço ousado de uma autêntica imaginação criadora. O sexo, em outras palavras, era uma moda literária.

Lovecraft sempre foi refratário a qualquer tipo de modismo.

A insistência no assunto partia das cartas que Lovecraft recebia. Ele naturalmente respondia a todos, primeiro com uma educação fleumática, depois, com a insistência destes, com uma ferina ironia colérica.

Lovecraft não explorava o sexo em sua obra, pois simplesmente não achava interessante.

Trecho da carta de Lovecraft a Belknap Long:

“Quando olho para o homem, desejo olhar para as características que o elevam à condição de ser humano, e os aparatos que dão as suas ações a simetria e a beleza criativa. Não é que eu deseje que lhe sejam emprestadas, à maneira vitoriana, pensamentos e motivos falsos e pomposos, mas desejo ver seu comportamento apreciado com justeza, dando ênfase às qualidades que lhe são próprias, e sem que sejam estupidamente postas em evidências essas particularidades bestiais que ele tem em comum com o primero varrão ou bode que apareça.”

Lovecraft não se interessava em empreender esforços descrevendo aquilo que os homens compartilham com os animais, mas entatizando aquilo que os diferencia. Até mesmo o medo que Lovecraft trabalha é um medo “tipicamente humano”, o medo do “desconhecido” – não o “medo-mecânico” da autopreservação em vista de uma ameaça iminente.

Seu interesse era o mistério, coisa que ele acreditava não encontrar no sexo.

Trecho da carta de Lovecraft a Belknap Long:

“Em uma palavra, meu flho, considero esse gênero de escritos como uma pesquisa indiscreta do que há de mais baixo na vida e como a transcrição servil de acontecimentos vulgares com sentimentos grosseiros de um porteiro ou de um marinheiro. Deus sabe, podemos ver animais suficientes e qualquer quintal e observar todos os mistérios do sexo no acasalamento das vacas e das potrancas.”

O antierotismo de Lovecraft não é, portanto, fruto de um medo ou pudor puritano, mas uma simples e lúcida escolha estética. Uma ausência proposital, para ele poder trabalhar com maior cálculo o seu verdadeiro objeto de obsessão: o medo do desconhecido e o mistério da existência num horizonte mais metafísico e existêncial.

Ele, portanto, não era “incel”, não era um “homossexual reprimido” e muito menos puritano. Só estava de “saco cheio” do assunto, assim como nunca escondeu o desprezo pelo realismo.

As cartas que ele escrevia demonstrava que ele estava muito bem e confortável nessa posição reclusa e anti-social e se divertia com quem tentava enquadra-lo numa patologia.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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