“Meus vizinhos, os Yamadas” de Isao Takahata (1999) – Uma obra-prima esquecida do Studio Ghibli

Meus Vizinhos, os Yamadas

“A coisa mais extraordinário do mundo é um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns”

G.K. Chesterton

Meus Vizinhos, os Yamadas

“Meus Vizinhos, os Yamadas” é um filme de Isao Takahata lançado em 1999. Baseado no mangá yonkoma “Nono-chan”, criado por Hisaichi Ishii, foi o primeiro filme digital produzido pelo Studio Ghibli.

O filme é composto por uma série de vinhetas que retratam o cotidiano da família Yamada: Takashi e Matsuko (pai e mãe), Shige (mãe de Matsuko), Noboru (filho de 13 anos), Nonoko (filha de aproximadamente 5 anos) e Pochi (o cão da família).

Essas vinhetas abordam diversas situações, como perder um filho em uma loja de departamentos, as relações entre pai e filho, marido e mulher, além de explorar a sabedoria que vem com a idade, os desafios do primeiro namoro e muito mais.

O filme flui de cena em cena sem se prender a narrativas restritas e sem se envolver em “grandes dramas da humanidade” (o que empobreceria o filme, na minha opnião), focando-se apenas em impasses cotidianos e triviais, como esquecer um guarda-chuva em um dia chuvoso ou a disputa pelo controle remoto da TV.

No entanto, apesar disso, a acumulação desses pequenos impasses cotidianos não obscurece a capacidade do filme de tratar assuntos mais profundos e sérios subjacentes à dinâmica familiar.

O filme dá a impressão de ser levemente enganador, incorporando seu estilo de animação feita com esboços artísticos e humor inocente para transmitir um nível surpreendente de filosofia.

Cada vinheita do filme é capaz de capturar suas próprias epifanias sutis sobre as interações entre os personagens e a relação de cada um consigo mesmo. Essas epifanias se acumulam ao longo do filme e, sem que percebamos, nos encontramos diante de uma complexidade que faria inveja até a Bergman.

O estilo de animação deste filme se diferencia tanto das outras obras do diretor quanto do próprio estúdio.

Isao Takahata mescla elementos modernos e tradicionais, buscando recriar digitalmente a sensação de “lápis no papel”.

A transferência digital de esboços elípticos e estilizados, que apenas insinuavam forma e volume, aliada a uma paleta de cores em tons pastéis que ultrapassam as linhas de contorno (ainda que necessárias) resulta em um desenho cru, porém vibrante e dinâmico. Esse estilo se aproxima mais do formato de “tirinhas de jornal” do que do traço clássico de mangá.

Essa escolha estilística serve a uma proposta satírica e, portanto, está mais alinhada ao propósito da animação do que se Takahata tivesse optado por uma representação mais realista, como em suas obras anteriores.

Neste filme, os dramas comuns do cotidiano ganham uma abordagem fantástica e lúdica.

Segundo Isao Takahata, a decisão de abandonar o realismo não foi apenas um experimento estético vazio, mas simbólica:

“Os cenários não são desenhados de maneira realista, mas resumidos em um nível simbólico por poucos acessórios – como uma mesa ou um armário. Até os personagens não são desenhados de maneira realista, mas para os espectadores pensarem: aqui estavam. Eles tem cabeças grandes, olhos minúsculos, pescoços inexistentes e pernas extremamente curtas. De qualquer forma, esses elementos não são percebidos como algo desagradável, mas como uma representação fiel de nós mesmos”.

Takahata poda o realismo para o aspecto simbólico, simplificando algumas coisas e exagerando outras. Ele faz isso não para distorcer a realidade, mas para representá-la de forma fiel.

A genialidade do filme também se nota pela sua forma narrativa em formato de Haiku (alguns haikus de Bansho, inclusive, são citados no filme).

O Haiku é uma forma curta de poesia japonesa caracterizada por uma justaposição dialética entre duas ideias – que nascem de uma motivação, do “momento haikai”, uma captura “impressionista” do poeta do momento de sua inspiração.

“Meus Vizinhos, os Yamadas” é justamente isso. A história de uma família sendo contada no fio narrativo dum conjunto de uma série de pequenas vinhetas situacionais, de uma fotografia “impressionista” de memórias familiares de uma família comum – e não ha nada mais extraordinário numa família comum.

Bibliografia recomendada:

Animation: A World History: Volume III: Contemporary Times - Giannalberto Bendazzi

Animation: A World History: Volume III: Contemporary Times – Giannalberto Bendazzi (em inglês)

Neste livro, vocês encontrarão as considerações de Takahata sobre o filme, mencionadas nesse artigo.

O livro faz parte de um profundo e abrangente estudo sobre animações no mundo todo e está divido em 3 volumes. O Volume III mostra o estado da animação de 1991 até o presente, caracterizada por tendências como a globalização econômica, a expansão de séries de televisão, a consolidação de mercados emergentes em países como China e Índia e a solidificação da popularidade das animações japonesas no mundo.

 

 

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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