Na província de Taishu, na China, havia um homem idoso que, todos os dias, fervorosamente praticava boas ações.
Em uma manhã, enquanto ele estava ocupado em suas tarefas, uma linda mulher de manto amarelo veio visitá-lo.
Ela parou diante do homem, que, surpreso, perguntou o que ela desejava e por que tinha entrado sem se anunciar.
A mulher respondeu que era a deusa que ele havia ardorosamente servido por muito tempo. Ela estava ali para lhe conceder uma dádiva.
Do seu peito, a deusa tirou um estojo de incenso cheio de um unguento. Mergulhou os dedos no unguento e untou as orelhas do homem, dizendo que, a partir daquele momento, ele seria capaz de ouvir as formigas.
Após a deusa se retirar, o homem imediatamente saiu à procura de algumas formigas. Mal havia cruzado a soleira de sua porta quando percebeu duas delas sobre uma pedra que sustentava um dos pilares de sua casa.
Inclinou-se sobre elas e escutou o que diziam:
— Vamos achar um lugar mais quente — propôs uma delas.
— Qual é o problema deste lugar? — questionou a outra.
— Este lugar é úmido e frio. Um imenso tesouro está enterrado aqui, e, por conta disso, o sol não consegue esquentar a terra.
Assim que terminaram o diálogo e saíram dali, o velho homem correu a procurar uma enxada e cavou ao redor do pilar, encontrando uma grande quantidade de jarros cheios de moedas de ouro.
A descoberta desse tesouro, que as formigas ignoraram, fez dele um homem rico.
A moral das formigas
A história é simples, mas serve como um gancho perfeito para a especulação sobre o caráter ético da natureza, refletida na indiferença absoluta das formigas em relação aos tesouros humanos.
Os jarros com moedas, na ótica das formigas, não eram mais do que utensílios incômodos que esfriavam o solo.
Essa antiga história abre um debate especulativo sério sobre uma suposta superioridade ética das formigas em relação à sociedade humana. Algo que cria uma conexão improvável entre antigos contadores de histórias da China antiga e os homens contemporâneos da ciência.
O professor David Sharp, da Cambridge Natural History, afirma que a arte de viver em sociedade nas colônias de formigas é objetivamente melhor do que a nossa e que elas nos anteciparam na aquisição de certos avanços industriais em prol da facilitação da vida social.
Segundo Sharp, esses insetos possuem um senso de organização social “fora do alcance do homem”. As formigas praticam horticultura e agricultura, são habilidosas no cultivo de cogumelos e, de acordo com o conhecimento atual da ciência, têm domesticado quinhentas e oitenta e quatro espécies de animais.
As formigas conseguem, inclusive, criar seus próprios currais de pulgões.
Herbert Spencer, filósofo, biólogo, botânico, antropólogo e profundo admirador de Charles Darwin e do liberalismo, escreveu sobre a desejabilidade de nos tornarmos como formigas. Spencer aplicava sua filosofia às conclusões frias de seu estudo científico. Para ele, as formigas dissolveram a contradição entre individualismo e coletivismo, traduzindo instintivamente a perfeição política do bem-comum que os gregos tanto buscavam.
O perigo da sociedade das formigas como modelo para sociedade humana
Embora isso possa convencer cientistas, filósofos e políticos como uma desejável utopia a ser alcançada, os literatos, religiosos e poetas que se debruçam sobre esse assunto de forma séria desenvolveram um certo incômodo com o assunto.
Até os antigos chineses com seu genuino interesse e admiração por estes insetos, pensavam sobre eles apenas para especular sobre si mesmos, não para segui-las como modelos de perfeição.
Nada assusta mais que pensar o fim da humanidade como uma sociedade perfeita e colaborativa nos moldes de uma colônia de insetos.
Brave New World de Aldous Huxley chegou perto de descrever as feições distópicas de uma sociedade “perfeita” como essa.
Quando menos se espera, a aptidão individual se torna disgenia sistêmica e o planejamento social se torna planficação da vida, onde nenhum nascimento acontece sem antes ter sido previamente roteirizado.
Os indesejados são descartados sem dor ou culpa antes mesmo do nascimento, ou marginalizado em guetos – pois não cumprem sua função de engrenagem perfeita em prol do coletivo.
Em suma, em nosso melhor sonho civilizatório, reduzimo-nos em uma sociedade de insetos: organizada, distributiva, susentável, satisfeita e estranhamente incômoda.