“Não importa se você é um rei, um mendigo ou o que quer que seja — você é um peão.”

Há algo único nos discos de rock progressivo dos anos 70 — algo que não encontro com tanta frequência em outros estilos musicais.

Para começar, não sei bem como traçar uma linha do tempo entre as primeiras músicas que convencionamos chamar de “rock” — basicamente canções festivas, onde as letras eram o que menos importava — e o que mais tarde se definiria como “rock progressivo”.

Se o rock fosse um personagem, seria inverossímil, mas, de um modo estranhamente coerente, faria sentido. Seria um sujeito que, depois de uma noite de bebedeira com os amigos, acabaria metido numa biblioteca, entre livros de filosofia, literatura e religião.

Pawn Hearts, quarto álbum do Van der Graaf Generator, lançado em 1972, é um dos mais belos exemplos do gênero. Desde a capa — uma ilustração enigmática e boschiana criada pelo artista Paul Whitehead — até as músicas, tudo nele é maravilhosamente construído na égide do mistério.

O disco teve diferentes versões, com variações na ordem e na lista de faixas, como se a obra se recusasse a ter uma identidade fixa. Oficialmente, o disco inclui Lemmings (Including ‘Cog’) — com participação de Robert Fripp, guitarrista do King Crimson —, Man-Erg e A Plague of Lighthouse Keepers. Porém, em outras edições, encontramos Theme OneWAngle of IncidentsPonker’s Theme e Diminutions. Há músicas para todos os gostos: desde as mais estruturadas até as mais caóticas, experimentais e vanguardistas.

O disco tem tudo: saxofones que simulam navios colidindo contra rocha, gritos e  baterias gravadas ao contrário, ao lado de delicadas notas de piano com vozes líricas e angelicais.

Entre as faixas, destacam-se duas: a belíssima Man-Erg e, principalmente, A Plague of Lighthouse Keepers.

A Plague of Lighthouse Keepers não é apenas a melhor música do disco, mas também o ápice da carreira do Van der Graaf Generator e, certamente, uma das maiores obras do rock progressivo. É a magnum opus de Peter Hammill, pelo menos para mim.

A canção narra a história de um faroleiro que enlouquece ao testemunhar pessoas morrendo no mar. O protagonista se sente culpado por sua impotência, e o final é deixado em aberto — cabe ao ouvinte decidir se ele cometeu suicídio (se jogando no mar) ou se encontrou uma forma de racionalizar a tragédia, domesticando a dor e seguindo em paz.

A música reflete o fascínio de Hammill pelo mar e por narrativas sombrias, explorando limiares entre vida e morte, sanidade e loucura.

O faroleiro é um dos meus personagens favoritos do rock, ao lado do peregrino de Stargazer, do Rainbow e o faraó de Powerslave do Iron Maiden.

Curiosamente, Pawn Hearts não vendeu bem na Inglaterra, mas alcançou o primeiro lugar na Itália — um país onde o rock progressivo floresceu com nuances mais barrocas e teatrais, menos psicodélicas e performáticas.

Assim como não consigo traçar uma narrativa verossímil que explique a transição do rock dos anos 50 para o progressivo dos anos 70, também não vejo uma identidade única entre as bandas do gênero, que são rebeldes contra qualquer tentativa de classificação.

Se Pawn Hearts fosse um personagem, seria um jovem poeta bêbado, de roupas amarrotadas, deitado nas escadarias da Catedral de Canterbury – essa é a imagem que me vem a cabeça, você que decifre o que eu quis dizer.

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