O maior pecado do footage não é ser mal filmado; isso, na verdade, é a regra. O maior pecado do footage é não ser convincente.
Um bom footage é aquele que convence como footage. Pode parecer redundante dizer isso, mas não é. O footage tem que se provar como recurso narrativo, não como uma mera conveniência.
Muito tempo e muito dinheiro são, de fato, economizados aqui, já que o próprio material bruto, sem edição, é aquilo que define o próprio estilo.
Para filmes de terror, isso é uma maravilha. A sensação de imersão, essencial para filmes desse tipo, faz do footage um expediente muito interessante quando bem utilizado.
No entanto, a falsa percepção de que uma simples filmagem amadora seja suficiente faz com que muitos filmes nesse estilo fracassem. Os maiores erros que encontro nesse estilo são de personagens que se comportam de forma inverossímil ou câmeras que, eventualmente, caem no chão em um ângulo muito privilegiado.
Tecnicamente, Noroi não é um footage perfeito, já que possui algumas conveniências muito evidentes; mas os débitos de alguns de seus equívocos são obliterados e até revertidos por causa de elementos sutis dentro da própria narrativa.
O filme segue exatamente as mesmas premissas de roteiro de The Blair Witch Project. São premissas tão parecidas que fica evidente a influência direta: trata-se de um pseudodocumentário sobre um repórter investigativo que estava fazendo uma reportagem sobre fenômenos paranormais. Esse repórter desaparece misteriosamente depois de sua casa pegar fogo e deixa um material bruto de suas investigações, envolvendo evocações de entidades, possessões, suicídios e rituais estranhos.
O filme é tributário de The Blair Witch Project, mas, na minha opinião, o supera, pois coloca com maior evidência vários elementos do meu interesse pessoal: a religião, o jornalismo e o horror lovecraftiano.
A parte do jornalismo me fez lembrar das grandes figuras de homens que varam o mistério pela curiosidade, deixando de lado o próprio senso de autopreservação. Eu fiz jornalismo e, embora hoje ache que é uma profissão moribunda, ainda carrego em mim essa figura romântica (hoje quimérica) do perscrutador detetivesco, com uma curiosidade quase filosófica a respeito dos assuntos que investiga.
O lovecraftianismo se revela não apenas na figura do demônio que desperta, ou nas concepções cósmicas pessimistas, ou mesmo na figura do protagonista pesquisador, mas também no comportamento dos personagens que enlouquecem ou ficam catatônicos diante da influência do desconhecido, no conhecimento daquilo que eles não deveriam conhecer.
No entanto, o elemento mais interessante são os elementos religiosos, culturais e folclóricos, traduzidos nos rituais, nos objetos sacralizados, nas conjurações e no desvelamento suprassensível daquilo que está oculto. Esses ritos, mesmo que tenham sido inventados para o filme, são extremamente belos e ainda alimentam meu interesse mirceaeliadiano.
A religião condensou o as normais sociais, o teatro, a música, a dança, a narrativa, a ciência, o direito e a filosofia em uma coisa só – e aqui vemos um pouco disso. Há aqui uma elaboração convincente nas cerimônias e nos gestos teatralizados dos participantes dos ritos, que são típicos da religião; sacerdotes que precisam sempre refazer, repetir e reencenar os eventos que acontecem num outro plano de existência. Pra isso, há uma necessidade dos paramentos, das máscaras, da música, das orações e, as vezes, da dança e do sacrifícios de sangue – coisas típicas de qualquer tradição.
Kagutaba, a grande entidade do filme, é um demônio convincente. Assim como todos os demônios, ele se manifesta preferencialmente em receptáculos femininos, que são mais suscetíveis e vulneráveis a sua influência, e se alimentam de sacrifícios de crianças ; no caso, uma sacerdotisa sob sua influência consegue ter acesso a fetos de uma clínica de aborto. A obsessão dos demônios sobre mulheres e crianças parecem ser universais.
Em suma, Noroi: A Maldição não é um exemplo perfeito de footage, mas a soma dos seus méritos não apenas paga eventuais falhas, como paga com juros.