ATENÇÃO: CONTÉM ALGUNS SPOILERS
Foi-se o tempo que cultura popular era sinônimo de cultura de baixa qualidade. É fato que existam muito mais coisas ruins e de baixo nível do que coisas boas, no entanto, isso se deve muito mais aos efeitos esperados de uma constante produção em larga escala do que de fato algo implícito.
A cultura pop não é essencialmente ruim, ela apenas precisa de uma curadoria melhor.
É isso que eu tento humildemente fazer no Taverna do Lugar Nenhum – tentar descobrir o diálogo entre cultura pop e alta cultura. O que a alta cultura tem a dizer sobre o universo quotidiano/prático/imanente/transitório e onde a cultura pop consegue mostrar feições de universalidade/atemporalidade e até transcendentalidade.
Sopranos é uma daquelas séries que podemos notar facilmente algumas dessas feições.
A quinta (e penúltima) temporada da série é, até agora, a única temporada que conseguiu superar a primeira, na minha opnião.
Antes de tudo, o roteiro da série é uma obra-prima. A carpintaria dos personagens nesta série é sensacional.
Nesta tempradam houve um trabalho intenso na construção da ambiguidade nos personagens.
David Chase brinca com a ambiguidade enquanto caminha corajosamente na tênue linha da inverossimilhança.
Novos personagens como Tony B. (interpretado pelo brilhante Steve Buscemi) são exemplos disso.
Por que o aparentemente reformado primo de Tony Soprano (James Gandolfini), que até então estava tentando convincentemente sair da vida de crime, de repente, lança um ataque cruel ao seu parceiro na sala de massagem – o único que lhe estendeu a mão enquanto buscava refazer sua dignidade como bom cidadão?
Nunca descobrimos. Apenas entendemos.
Aceitamos facilmente que Tony B. possui traços misteriosos e incorrigíveis de disfuncionalidade. Como diria Santo Agostinho, para vencer a perversidade é necessário, antes de tudo, vencer o hábito da perversidade. Afinal, o mal não tem apenas consequências, mas uma sobrevida. Já dizia a famosa citação do Ato 3 da Cena II de Júlio César por William Shakespeare: “o mal que os homens fazem vive depois deles”.
Outra situação que traz uma anatomia bem peculiar do mal se refere a morte da personagem Adriana (Drea de Matteo). A maldade de Christopher (Michael Imperioli) está diluida numa espécie de febril lealdade com Tony Soprano – mesmo que ao longo desta temporada tenham surgido diversas rusgas entre os dois.
Os personagens de Sopranos possuem complexidades dignas de peças como Ricardo III de Shakespeare.
Além das autênticas questões shakesperianas, outras características clássicas desta série se mantém. Sopranos ainda mostra uma interessante justaposição do mundo brutal e às vezes glamuroso da Máfia com o mundo quotidiano apático das aparências cíveis.
Reforçando: o episódio 11 dessa temporada (The Test Dream), com uma sequência onírica de 20 minutos, é uma das coisas mais incríveis da história da TV.