Quando vemos com atraso de 30 anos uma série ou filme que não é apenas uniformemente consagrado pelo público e pela crítica, mas que também é uma verdadeira “pedra angular” para o gênero, para a televisão, para a história do audiovisual e para a própria cultura pop, toda crítica parece que já foi feita e não há mais nada que se possa acrescentar.
Gostaria de dizer mais sobre essa série além da já manjada e debatida discussão sobre a “subversão do subgênero de máfia”.
As famílias do crime italiano (e ítalo-americano) já foram satirizadas, romantizadas, mitologizadas e imortalizadas em filmes clássicos, feitos por grandes nomes como Francis Coppola e Martin Scorsese.
Sopranos revista esse universo de forma totalmente nova e autêntica. Revitaliza na TV esse mundo superfamiliar de homens brutos, porta-malas manchados de sangue, tapinhas, beijos no rosto, pistolas com silenciadores e ternos cafonas. Parece evidente que alguém já deve ter analisado como a série brinca e manipula de forma genial os esteriótipos desse subgênero.
A única coisa que posso fazer aqui é um compilado elogioso de boas críticas que andei lendo sobre a série, tentar dar algum parecer estritamente pessoal sobre a produção e fazer, talvez, alguma metacrítica.
A ideia de “Os Sopranos” é mostrar que o chefão da máfia Tony Soprano (James Gandolfini), que é violento o suficiente para matar ou quebrar a perna de um devedor, está deprimido e tendo uma crise de meia-idade.
Tudo começou quando ele viu alguns patinhos aparecerem em seu quintal em Nova Jersey. Um dos raros momentos de alegria de Tony, que já estava mergulhado numa apatia estranha.
Um dia, ao ver que os patos voaram para longe de sua piscina, ele desmaia no quintal e, logo em seguida, seu médico o envia a uma psiquiatra, Dra. Jennifer Melfi (Lorraine Bracco), que rapidamente lhe prescreve Prozac.
Matthew Gilbert da The Boston Globe escreve que Sopranos se classifica como um drama policial misturado com comédia pós-moderna que satiriza tanto o gênero da máfia quanto a psicologia da “era Prozac”.
Nancy Franklin do The New Yorker, em sua crítica “The Hit Man’s Burden”, além de enfatizar a importância da série para HBO (que a produz) e para própria televisão, dá alguns insights interessante sobre as sesssões de Tony Soprano com a Dra. Jennifer Melfi.
Dentre os diversos tópicos que podemos abordar em Sopranos, o storytelling-psicológico foi o que mais me chamou a atenção.
As sessões de Tony são o marca-passo da série e parecem constituir uma representação extraordinariamente autêntica do que se passa entre um psicoterapeuta e um paciente.
Dra. Jennifer Melfi é, além de tudo, uma personagem incrível. Enquanto Tony é o narrador-protagonista, ela é o público-personagem. Ela é a ouvinte da história que somos expectadores.
Seu verniz de neutralidade profissional e sua calma impassiva é divertidamente confrontada com a sua natural perplexidade humana, que se manifesta nos pequenos movimentos involuntários de sua boca e olhos, nas suas micro-inquietações e nas suas controladas mudanças de postura em resposta ao que Tony diz.
Nela vemos a ciência da psiquiatria e a real experiência humana tentando achar um meio de coexistência natural. Assim como Tony Soprano tenta achar uma coexistência natural de suas crises pessoais (sua guerra interna) e sua posição no crime organizado (sua guerra externa).
Nesse conflito, podemos entender um pouco melhor a complexidade do ser humano e desafiar em nós mesmos as certezas de nossas próprias balizas morais, pois não apenas começamos a entender um criminoso e assassino brutal, mas até mesmo passamos a simpatizar com seus problemas.
Isso não é relativizar o mal. Sopranos não glorifica ou romantiza a máfia – muito pelo contrário. A série ilustra que além dos inexoráveis conceitos de certo e errado, de crime e legalidade, existem muitos níveis possíveis de empatia e que todos, absolutamente todos, não estão safos dos demônios internos ou da própria mente. Esse é o sentido de “amar o próximo como a ti mesmo” sem abrir mão ou relativizar as idéias absolutas do bem e do mal.