A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim

Keum Suk Gendry-Kim é uma escritora e quadrinista sul-coreana. Ela é conhecida por se inspirar em suas próprias memórias e nas histórias dramáticas de seus familiares e conterrâneos.

Suas primeiras obras no universo dos quadrinhos foram “A Canção de Papai” (2012) e “Batatas” (2015). “A Canção de Papai” é uma história autobiográfica que se concentra nas experiências da autora enquanto ela tenta lidar com a morte de seu pai. Já “Batatas” é uma adaptação de uma obra cinematográfica francesa, que conta a história de um jovem casal que trabalha duro para cultivar batatas em sua pequena propriedade rural.

No entanto, seu trabalho mais notável é “Grama” (2017), um quadrinho que conta a história de uma “mulher de conforto” durante a Segunda Guerra Mundial. “Mulheres de conforto” era um eufemismo usado para se referir às mulheres que foram forçadas à prostituição e escravidão sexual em bordéis militares japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. O quadrinho de Keum Suk Gendry-Kim retrata a vida dessas mulheres de forma intensa e emocionante, explorando suas experiências traumáticas e a luta pela sobrevivência.

Neste artigo, vamos abordar a obra “A Espera”, um quadrinho lançado em 2021 e traduzido para o português pela editora Pipoca e Nanquim.

“A Espera” conta a história de Jina, uma escritora que se esforça para entender a vida de sua mãe, Gwija. A trama é centrada na história de Gwija, uma senhora coreana que, aos dezessete anos, foi forçada a se casar com um estranho para escapar da crueldade de servir às tropas japonesas como “mulher de conforto” durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa.

Ainda que tenha se casado relutantemente, Gwija consegue encontrar felicidade ao lado de seu marido e ter dois filhos. No entanto, a Guerra da Coréia transforma a família em refugiados itinerantes, separando-os e levando Gwija a iniciar uma nova família no Sul sem nunca esquecer a antiga.

Anos depois, Jina promete ajudar sua mãe a se reconectar com sua antiga família, mas a espera se torna cada vez mais difícil e desesperançada à medida que Gwija, agora idosa e frágil, vê-se distante do sonho de rever seus entes queridos e de reconciliar-se com seu passado.

“A Espera” é uma obra de ficção baseada em testemunhos reais de três pessoas que viveram o drama da separação de famílias durante a Guerra da Coréia. A autora Keum Suk Gendry-Kim habilmente retrata a história comovente e cativante de Gwija, trazendo à tona temas como amor, família, identidade e esperança. A obra é uma homenagem emocionante àqueles que sofreram as consequências da guerra e da separação de suas famílias.

Capítulo 1 – Saindo da Cidade

Logo no primeiro capítulo, a autora apresenta o tema sem entrar no contexto específico e nuclear da narrativa, como uma espécie de prenúncio daquilo que iríamos descobrir. O primeiro capítulo conta sobre o dia em que Jina teve que se separar da sua mãe Gwija na ilha de Ganghwa, na Coreia do Sul, devido à especulação imobiliária que encareceu os aluguéis da região e ela não teria como pagar.

A autora, sem entrar na narrativa principal, que é a separação das famílias na Guerra da Coreia, já inaugura o tema, mostrando que não é necessário um contexto de guerra para que as famílias sejam separadas. As famílias na Coreia do Norte vivem num claro estado de cativeiro, pois não podem cruzar as fronteiras com o risco de pena capital. Isso não significa que na Coreia do Sul exista uma liberdade ideal de trânsito ou permanência. Aqui, o valor da propriedade e da família é relativo, pois está sujeito ao critério de compra. Família e propriedade não são um direito, mas uma mercadoria.

Sem ter um tom explicitamente político, Keum Suk coloca de maneira clara a noção de que entre as duas Coreias, entre as duas ideologias, entre os dois Estados, existem pessoas reais que não se encaixam ou se veem acolhidas.

Capítulo 2 – Duas Amigas

O segundo capítulo aborda a temática da memória e da fragilidade da velhice. Nele, é apresentada uma pequena fração da vida de Gwija, uma mulher idosa que sofre com dores na lombar, dificuldades para andar, mãos trêmulas e ferimentos que parecem surgir do nada.

No entanto, apesar desses incômodos, Gwija mantém uma esperança firme de reencontrar o seu filho, que desapareceu durante a Guerra da Coréia. É interessante como a debilidade física da personagem é mostrada neste capítulo, realçando a lentidão dos seus movimentos.

O título deste capítulo, “Duas Amigas”, faz referência a um breve encontro que Gwija tem com uma velha amiga ao sair de casa para levar comida para a filha. Durante a conversa, a amiga acaba questionando se Gwija seria capaz de reconhecer o próprio filho caso o encontrasse novamente.

Essa pergunta indelicada enfurece Gwija e ela volta para casa brigada com a amiga. A personagem é capaz de suportar todas as dores da sua velhice, mas não consegue lidar com a ideia de que não seria capaz de reconhecer o próprio filho.

Em resumo, este é um belo capítulo que discursa muita coisa por meio das entrelinhas do que não é dito. A economia narrativa da autora é admirável.

Capítulo 3: Minha terra ao norte.

No terceiro capítulo, Gwija relembra sua difícil infância na província de Hamgyong Sul, atualmente localizada na Coreia do Norte. Ela vivia com seu pai, mãe, irmãos e cachorro em uma comunidade situada em um terreno montanhoso, com clima frio, recursos escassos e o lago mais próximo a quilômetros de distância. O trabalho diário de plantação de grãos era essencial para a sobrevivência.

Duas coisas chamam atenção. Em primeiro lugar, a solidariedade entre os vizinhos era essencial. Sempre que alguém voltava com uma boa pescaria no lago, levando consigo dois ou três peixes pequenos, toda a comunidade era alimentada. Isso, na verdade, era uma superstição, pois acredita-se que não compartilhar atraía má sorte, e ninguém ousava questionar isso. É interessante como um dogma resultava em uma noção orgânica de comunidade.

Em segundo lugar, homens e mulheres tinham funções específicas e muito bem delimitadas. Os homens eram naturalmente mais fortes e tinham primazia na comunidade, pois eram os provedores. Todo o arroz era destinado a eles, e todo o milhete às mulheres. A autora relata isso sem ressentimento, pois os homens precisavam da energia do arroz para realizar seu trabalho mais duro, enquanto o papel masculino era naturalmente sacrificial.

A parte mais melancólica é quando Gwija relata o dia em que perdeu seu cachorro. Desde então, ela se tornou uma figura triste até a velhice, o que representa o grande drama deste capítulo. A noção de que as coisas ruins são dimensionadas de acordo com o significado que o coração atribui é muito verdadeira.

Capítulo 4 – Tempos de Caos.

Aqui, continuamos a explorar as memórias da juventude de Gwija.

Este capítulo se passa no final do domínio japonês sobre a Coreia, após uma bem-sucedida coalizão com a União Soviética que expulsou os invasores japoneses do território.

Existe um sentimento genuíno de alegria pelo fim da tirania nipônica e pela promessa da tão esperada liberdade de expressão.

No entanto, a autodeterminação e a restauração da identidade coreana foram apenas um breve momento de ilusão, pois a chegada e instalação dos russos no território revelaram outro tipo de dominação.

A Coreia mal acabou de sair de um regime de terror e parece ter entrado em outro.

Este capítulo oferece uma aula desapaixonada de história política da Coreia, sem demonizar ou bajular nenhum dos lados envolvidos.

Capítulo 5: Momentos felizes, apesar de tudo

Este capítulo apresenta os momentos imediatamente posteriores ao casamento de Gwija, incluindo o nascimento de seu irmão mais velho e uma parte de seus primeiros anos de vida. São recordações de momentos felizes, como indica o título do capítulo.

No entanto, a segunda metade do capítulo revela a tristeza da peregrinação forçada de diversas famílias devido à eclosão de uma guerra cujos motivos eles desconhecem. Os mais afetados pela guerra são os que menos entendem o que está acontecendo, e nem mesmo a divisão entre o Sul e o Norte da Coreia é conhecida por eles.

As famílias comuns estão completamente alheias às disputas econômicas e ideológicas dos governantes, que muitas vezes agem como demônios. Elas viveriam pacificamente sem saber o que é comunismo ou capitalismo.

Captiulo 6: 1950 – Guerra

 

Aqui, Gwija está em sua peregrinação como refugiada, após a eclosão da guerra que afeta a todos, independentemente de estarem dispostos a lutar ou não. A autora preenche as telas com figuras retorcidas pela tristeza e pela memória. Em certo momento, quando o pai de Jina some no meio da multidão junto com seu irmão, depois que sua mãe saiu do grupo para dar-lhe de mamar, as figuras do seu pai e do seu irmão se transformam em silhuetas vazias.

“A Espera” não é apenas a descrição dos fatos ocorridos na Guerra – ela é a descrição desses fatos retorcidos na memória e nas expressões emocionais. Durante o caminho, os refugiados foram perdendo a capacidade de se horrorizar com a morte. No começo, quando se deparavam com cadáveres ao longo do caminho, conseguiam sentir tristeza e indignação. No entanto, quando isso se tornou frequente, os cadáveres passaram a ser vistos como regalias, pois ofereciam a oportunidade de trocarem seus sapatos (caso os sapatos do morto estivessem em melhor condição) ou verificar se havia qualquer objeto de valor com eles.

Outro aspecto forte deste capítulo é a situação em que o grupo de refugiados se depara com crianças e bebês abandonados ao longo do caminho e é forçado a continuar, pois, por mais que seu impulso fosse ajudar, não havia recursos suficientes para atender a todos.

Capitulo 7: Rumo ao Sul

Neste capítulo, acompanhamos Gwija em sua jornada como refugiada, distante de seu marido e filho, e carregando apenas sua filha Jina consigo. Ela mantém a esperança de reencontrá-los novamente, mas é doloroso ver como os refugiados facilmente se separam de seus entes queridos. Basta um momento de distração e as figuras somem na multidão. A busca por eles é impossível devido à exaustão e falta de recursos, restando apenas a esperança.

Essa situação reflete o estado de sobrevivência extrema em que se encontram os refugiados, onde o corpo e a mente se concentram apenas em caminhar e sobreviver. Além disso, o capítulo mostra que os refugiados e as zonas de conflito armado estão cada vez mais próximos, com rajadas de tiros sendo ouvidas à noite. Essa proximidade aumenta ainda mais o risco e a incerteza enfrentados pelos refugiados em sua jornada.

Capítulo 8: Obrigada por Estar Viva

Aqui temos a história de uma amiga de Gwija que fez parte do primeiro grupo no 21° Reencontro de Famílias Separadas ocorridos entre 20 e 22 de Agosto de 2018.

Nesse dia, ela reencontrou a irmã mais nova, de quem se separou na guerra, depois de 68 anos.

Uma coisa interessante desses encontros é notar como as vítimas de uma guerra em que não escolheram participar se tornam detentas dentro do próprio país.

Esses encontros promovidos pelos dois países podem ser vistos geopoliticamente na ótica de uma aproximação humanitária.

No entanto, eles só reforçam a ótica de que o Estado (tanto o Sul quanto o Norte) tem uma natureza inerentemente carcerária e a distinção entre prisioneiro e cidadão é meramente semântica.

As fronteiras desses dois países são apenas demarcações entre duas grandes penitenciárias.

Os encontros são cronometrados, acontecem em um lugar específico, com lugares numerados e com guardas armados vigiando tudo.

Existe alguma diferença disso da situação de um prisioneiro comum recebendo visitas?

No entanto, não quero dar a impressão de que os dois lados estão em pé de igualdade.

A Coreia do Sul tem muitos problemas, sim, mas não dá para comparar com a Coreia do Norte.

Você pode usar qualquer retórica e até citar muitos exemplos de difamação ou exageros (que de fato acontecem), mas a Coreia do Norte é, evidentemente, um regime muito mais desumano – e isso a gente percebe nos detalhes.

Nesses encontros, as famílias trocam presentes.

As pessoas do Sul presenteiam as do Norte com lembrancinhas, produtos, retratos, utensílios domésticos, entre outras coisinhas simples.

O governo da Coreia do Norte confisca a maioria dessas coisas – pois a política não permite que mercadorias do Sul circulem livremente dentro do país.

Além disso, na sua obsessão planificadora, o governo norte-coreano distribui para as famílias do seu lado alguns souvenirs padronizados para que sejam entregues às famílias do lado da Coreia do Sul.

Em suma, o nível de desumanização norte-coreano é tão alto que eles encontram uma forma de estatizar até mesmo os momentos mais íntimos e delicados dessas pessoas.

Capítulo 9 – Passeio ao Mar

Aqui temos a história detalhada dos refugiados, contada por Gwija. Ela descreve a viagem do porto de Hungwan, no Distrito de Twejo, até o porto de Busan, cidade do extremo sudeste da península coreana. Gwija relata a aglomeração de refugiados em espaços inadequados no navio, a logística do Exército Americano e da ONU que conduzia as pessoas até abrigos improvisados, a distribuição de suprimentos para os refugiados e como os mesmos eram vendidos para prisioneiros. Ela também descreve a triste história de mulheres que se lançaram na prostituição e como elas eram hostilizadas pelos outros refugiados. Essa é uma história de drama, adaptabilidade, tragédias e preconceitos que mostra a luta pela sobrevivência dos refugiados.

Capítulo 10 – Video Carta da Mamãe

Este último capítulo é um dos mais emocionantes do livro.

Aqui, é Jina, e não sua mãe, que protagoniza a história.

Aqui, vemos a vida de Jina desde a infância até o presente, com reflexos do passado de sua mãe.

Ela realiza uma investigação delicada e sensível da biografia da mãe e também explora suas atitudes em um exercício de empatia.

Existem outras coisas a respeito de sua mãe que são ressignificadas, como por exemplo o fato dela sempre demonstrar mais cuidado com seu irmão (fruto de um segundo casamento) do que com Jina.

Isso era visto com ressentimento, depois com raiva e, no final, com compreensão.

Sua mãe cuidava mais do seu irmão na esperança de que seu filho perdido, uma constante em sua vida até o fim, pudesse ser também cuidado por outra mulher com a mesma dedicação.

O passado é marcado pelas lembranças e também por um vídeo que sua mãe gravou para um programa de reencontro de famílias separadas.

Sua esperança é que ele possa um dia ouvir o vídeo e que ambos possam se encontrar um dia.

 

 

 

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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