Existem coisas muito interessantes a serem analisadas no mito de Hera.
Normalmente, ela é retratada como uma deusa de temperamento agressivo, hostil, persecutório e ciumento. Sendo esposa de Zeus, não poderia ser diferente. Zeus é conhecido por suas incontáveis aventuras amorosas extraconjugais. Hera, como deusa das bodas, da maternidade e do casamento, não apenas perseguia as amantes de Zeus, mas também os filhos das relações entre Zeus e essas amantes.
Essas constantes violações de Zeus, reconhecidamente moralmente reprováveis entre os homens, eram mencionadas pelos poetas e mitógrafos sem, curiosamente, que o seu prestígio como deus diminuísse. Nem mesmo essa flagrante injustiça o desabonava como representante arquetípico de justiça. Aparentemente, os pecados de Zeus eram ignorados como pecados – ou, mais provável, o homem antigo sabia que a moral dos deuses e a moral dos homens eram tão radicalmente diferentes quanto suas naturezas (por isso, eu bocejo quando alguém tenta contradizer o amor de Deus com sua ira absolutamente devastadora).
Da mesma feita, Hera, apesar de ser reconhecida como figura hostil (quase como o arquetípico vilanesco da megera), era também respeitada como uma figura de culto, com templos erguidos e amplamente frequentados nas principais cidades e capitais, como Argos.
Há também, em sua figura, uma certa dissociação entre poder e submissão.
A deusa era, ao mesmo tempo, temida por deuses e homens, como figura imponente e poderosa, e submissa às ofensas de seu esposo – que, inclusive, era abusivo. Mircea Eliade diz que Zeus, em relação a Hera, tem um comportamento que jamais um chefe de família, mesmo no contexto fanaticamente patriarcal da sociedade grega, ousaria assumir com sua esposa: ele a mói de pancadas e, certa vez, chega até a pendurá-la com um grande peso atado aos pés, tortura que mais tarde foi aplicada aos escravos.
Essas ofensas eram suportadas por Hera com grande dor, que não se diluía em nenhuma espécie de flagelo salvífico. Hera não era uma santa cristã, não viraria a outra face, não desejaria amar em dobro o seu agressor, não era capaz de transformar todas essas injustiças no peso de uma cruz.
De mãos e pés atados, ela sentia ao mesmo tempo as ofensas de Zeus e a estranha adoração pelo seu poder e prestígio diante dos mortais e dos outros deuses. Era a figura clássica da rainha-escrava – algo muito diferente do que viria a ser, na cristandade, a figura de Maria como rainha-serva, que transfigurava o ódio e o ressentimento “herático” em serviço.
É difícil dizer se o culto à sua figura também era motivado por uma certa solidariedade ou pena, pois o caráter grego, que é mais fatalista que o cristão, aceita melhor uma realidade trágica de não-salvação e não-redenção, conseguindo adorar, ao mesmo tempo, a rainha dos deuses e a escrava de seu esposo na mesma figura.