A física é um tipo de ciência que dialoga deduções precisas da matemática e observação sensível dos fatos.
Aliás, muito mais que isso, a física é quase uma ciência da clarividência. Através dela, podemos prever movimentos e órbitas dos astros e descrever trajetórias antes mesmo que elas se manifestem na realidade.
Todas as fórmulas físicas se comportam como inscrições mágicas de um feiticeiro.
Transformamos o tempo e o espaço, antes objetos puros de análise filosófica, em variáveis de uma equação.
A física é, além de ciência, uma expressão filosófica poderosa, é a elocução de todas as ambições epistêmicas ocidentais: de São Tomás de Aquino até os ocultistas do Renascimento. A conformação do abstrato na matéria, a manipulação alquímica das coisas, a ambição de identificar a ordem nos sentidos.
No desenvolvimento da física, as conclusões dedutivas da matemática (ou seja, dos símbolos abstratos e da pura lógica) se conjulgaram com as constatações do experimento.
No entanto, a grande glória do ocidente também escondia seu grande declínio.
O valor da física se tornou tão prestigiado que o ocidente acabou cedendo a tentação de que não necessitava mais de nada.
Os séculos XVIII, XIX e parte do século XX no ocidente foram marcados pelo apagão da metafísica.
A metafísica agiu silenciosamente na manutenção da saúde do pensamento filosófico ocidental. Ela criou uma barreira para que outras matérias do conhecimento não se tornem ontológicamente arrogantes pela aparente completude de significado decorrente da relação da dedução de suas teorias e do seu respectivo experimento no mundo real.
Sem a metafísica, caímos na falsa impressão de que os astros se submetem às leis dos astrônomos e não as leis astronômicas. Existe uma sutileza nessa consideração que muda completamente o modo de compreensão das coisas.
José Ortega y Gasset em seu livro “O que é a Filosofia” diz que essa mudança de perspectiva no pensamento europeu coincidiu exatamente com a ascenção do “burguês”, ou seja, um tipo de homem despido de vocação contemplativa, um homem que só conhece a prática e que só consegue extrair do conhecimento aquilo que lhe serve em sentido utilitário.
Os gregos da antiguidade e os escolásticos da idade média não estavam tão preocupados com a fertilidade utilitária do conhecimento.
Para o burguês, é o contrário. Antes de ser filósofo, místico ou artista, o burguês era artesão, comerciante e produtor – todo conhecimento, em sua perspectiva, deveria ter validade no sentido mas utilitário e mais imediato possível.
Se a metafísica “não tem utilidade” (um pensamento que já é equivocado), então ela é prescindível na consideração conteplativa do sujeito. Está condenada ao campo da curiosidade filosófica primitiva.
O que decorre desse pensamento é a afirmação dogmática que apenas aquilo que se traduz na materia pode ser considerado real.
Já deu pra perceber que tanto cientificismo quanto o materialismo de Marx não são nada mais nada menos que a radicalização do pensamento burguês, né?
Por isso que a era burguesa, na qual ainda estamos inseridos, orgulha-se tanto do triunfo industrial e da tecnologia.
José Ortega y Gasset vai falar que o pensamento ocidental foi colonizado pelo imperialismo da física.
Série: A vida em outros planetas (Netflix)
Há uma mini-série de ficção científica da Netflix que se chama “A vida em outros planetas”.
Essa mini-série possui 4 episódios, cada uma fazendo a especulação sobre como seria a vida em 4 planetas: Atlas, Janus, Éden e Terra (não é a “Terra” que você está pensando, o nome do planeta em inglês está como “Terra” mesmo, e não “Earth” – não seria possível uma tradução para o português sem a ocorrência imediata desta confusão).
O último episódio, “Terra”, é o mais interessante pois traduz ao máximo o que se tornou o sonho ocidental do imperialismo da física.
Neste episódio, temos um planeta chamado Terra, cuja civilização é considerada extremamente avançada ao ponto de estar terraformando e colonizando outro planeta em seu sistema estelar.
O episódio apresenta em seu exame principal a ideia de que as civilizações se configuram conforme sua capacidade de uso energético: ou seja, a série vocaliza uma perspectiva extremamente materialista.
Marx dizia que a civilização é algo que ocorre na órbita da economia (a infraestrutura), os cientificistas dizem que a civilização é algo que ocorre na órbita da manipulação energética.
É interessante notar como o episódio trata “Terra” como uma projeção desejável do futuro da humanidade.
Os habitantes deste planeta venceram a morte e a desigualdade.
Eles são tão evoluidos que perderam seus corpos, tendo feito bioengenharia de si mesmos como massas de tecido neural mantidas vivas dentro de tanques.
Eles são tão evoluidos que são alimentados por nutrientes de plantas cultivadas e igualitariamente atendidos por robôs de sua própria criação, tornando-se, inclusive, biologicamente imortais.
Os habitantes deste planeta também venceram o individualismo.
Eles são tão evoluidos que suas mentes estão todas ligadas em uma única inteligência unificada e coletiva.
Não há mais conflitos, todos são perfeitamente harmônicos.
Também não há sinais de religião, cultura, poesia ou pensamento metafísico, pois toda sua sociedade está conformada apenas em alongar a vida indefinidamente e da forma mais otimizada e prazeroza possível.
Em suma, a percepção de uma “sociedade evoluida” em uma mente radicalmente cientificista e pragmática reduziu o conceito de “sociedade perfeita” numa espécie de cultura de fungos?
Esse é o grande paradoxo da queda do pensamento ocidental: o abandono do Éden, do Valhala ou dos Campos Elíseos, para esse tipo de ambição estranha.