Quem são os heróis?

Segundo Mircea Eliade, em seu livro A História das Crenças e das Ideias Religiosas, os heróis podem ser descritos como figuras que estão acima dos homens e abaixo dos deuses, embora essa definição não seja tão simples quanto parece.

Para Erwin Rohde, em sua obra Psyché (1893), os heróis são estreitamente relacionados aos deuses ctonianos e, ao mesmo tempo, aos homens falecidos. Portanto, embora não sejam, em geral, deuses ou homens, eles podem ser interpretados como tais em certos momentos. De fato, para Rohde, nada mais são do que os espíritos de homens falecidos, que habitam no interior da terra, onde vivem eternamente como deuses, aproximando-se deles pelo poder.

Essa indeterminação sobre a posição exata entre deuses, homens e heróis — e a necessidade de uma posição intermediária que os vincula intimamente a nós e ao divino — pode remeter, de alguma forma, a uma estranha e recorrente memória de um privilégio que perdemos. Embora eu tenha ressalvas quanto à ideia de uma unidade fundamental entre as religiões, não consigo ver toda e qualquer cosmogonia antrópica (aquela que se concentra na criação do homem) de maneira diferente.

A aproximação entre heróis e deuses também é curiosa. Tal como os deuses, os heróis eram honrados com sacrifícios, mas os nomes e os procedimentos dos ritos dedicados a essas duas categorias eram distintos.

Hermann Usener, em sua obra Götternamen: Versuch Einer Lehre Von Der Religiösen Begriffsbildung (1896), publicada três anos depois de Psyché de Erwin Rohde, é mais ousado e afirma que os heróis provinham de divindades “momentâneas” ou “particulares” (Sondergötter), ou seja, seres divinos especializados em funções específicas, como os demônios são vistos pelos herméticos.

Angelo Brelich, em Gli eroi greci: un problema storico-religioso (1958), obra que Mircea Eliade considera uma das mais ricas e profundas sobre o assunto, descreve a “estrutura morfológica” dos heróis: eles são personagens cuja morte tem um destaque particular e que possuem estreitas relações com o combate, a agonística, a divinação, a medicina, a iniciação de puberdade e os mistérios. Os heróis fundam cidades, têm um caráter cívico e são os ancestrais de grupos consanguíneos, além de “representantes prototípicos” de certas atividades humanas fundamentais. Também são caracterizados por traços singulares ou até monstruosos, e um comportamento excêntrico, que denota sua natureza sobre-humana e os diferencia de santos.

De maneira sucinta, para Mircea Eliade, os heróis gregos (os mais famosos) compartilham uma modalidade existencial sui generis (sobre-humana, mas não divina) e atuam numa época primordial, precisamente aquela que acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus. Sua atividade ocorre depois do surgimento dos homens, mas num período de “começos”.

Para reforçar sua dupla natureza ou até sua natureza incerta, aos heróis é atribuída uma “dupla paternidade” (Héracles é filho de Zeus e de Anfitrião; Teseu, de Posídon e de Egeu), ou apresentam um nascimento irregular (Egisto, fruto do incesto entre Tiestes e sua filha). Eles são abandonados pouco tempo após o nascimento (como Édipo, Perseu, Reso, etc.) e amamentados por animais (Páris é alimentado por uma ursa, Egisto por uma cabra, Hipótoo por uma égua, etc.). Passam a juventude viajando por terras longínquas e se singularizam por inúmeras aventuras (principalmente feitos esportivos e guerreiros), celebrando bodas divinas (como as de Peleu e Tétis, Níobe e Anfíon, Jasão e Medeia).

Os heróis também se caracterizam por uma forma específica de criatividade, comparável à dos heróis civilizadores das sociedades arcaicas. Como os ancestrais míticos australianos, eles modificam a paisagem, são considerados autóctones (os primeiros habitantes de determinadas regiões) e ancestrais das raças, povos ou famílias (os argivos descendem de Argos, os árcades de Arcos, etc.). Eles inventam e “fundam” muitas instituições humanas, como as leis da cidade, as regras da vida urbana, a monogamia, a metalurgia, o canto, a escrita, a tática, e são os primeiros a praticar os ofícios. São, por excelência, fundadores de cidades, e as figuras históricas que estabelecem colônias tornam-se heróis após a morte. Eles instituem os jogos esportivos e os concursos agonísticos como formas características de seu culto, o que explica a heroicização dos atletas vitoriosos e célebres.

Há também os heróis associados aos mistérios, sendo alguns solidários aos oráculos, como Triptólemo e Eumolpo.

Os heróis se caracterizam ainda pela sua morte. Alguns são excepcionalmente transportados às ilhas dos Bem-Aventurados (como Menelau), à ilha mítica de Leuce (Aquiles), ao Olimpo (Ganimedes) ou desaparecem sob a terra (Trofônio, Anfirau). A maioria, no entanto, sofre uma morte violenta em guerra (como os heróis mencionados por Hesíodo, caídos diante de Tebas e Troia), em combates singulares ou vítimas de traição (Laio por Édipo, etc.). Muitas vezes, sua morte é dramaticamente singular: Orfeu e Penteu são despedaçados, Actéon é estraçalhado por cães, Glauco, Diomedes e Hipólito por cavalos, ou são devorados ou fulminados por Zeus (como Asclépio, Salmoneu, Licáon, etc.) ou mordidos por uma serpente (como Orestes, Mopso, etc.).

No entanto, é justamente a sua morte que lhes confirma e proclama sua condição sobre-humana. Se por um lado não são imortais como os deuses, por outro, os heróis se distinguem dos seres humanos pelo fato de continuarem a agir após a morte. Seus despojos estão carregados de poder mágico-religioso. Seus túmulos, relíquias e cenotáfios atuam sobre os vivos por séculos a fio. Em certo sentido, podemos dizer que os heróis se aproximam da condição divina graças à sua morte: gozam de uma pós-existência ilimitada, que não é nem larvária nem puramente espiritual, mas consiste em uma sobrevivência sui generis, pois depende dos restos, traços ou símbolos de seus corpos. Nesse sentido, Neil Gaiman, em Deuses Americanos, compreendeu bem essa ideia. Embora ele se refira a deuses e não especificamente a heróis, a ideia de que o poder dessas entidades está ancorado no substrato material da memória e nos símbolos físicos que carregamos conosco e que mantêm viva a lembrança é exatamente o que Eliade quer dizer aqui. Por isso as tradições são importantes, por isso os despojos dos heróis são enterrados e até admitidos nos santuários (como Pélope no templo de Zeus em Olímpia, Neoptólemo no de Apolo em Delfos).

Seus túmulos e cenotáfios constituem o centro do culto heróico: sacrifícios acompanhados de lamentações rituais, ritos de luto e coros trágicos. Os sacrifícios prestados aos heróis eram semelhantes aos efetuados para os deuses ctonianos, mas se distinguiam dos realizados para os olímpicos. As vítimas eram abatidas com a garganta voltada para o céu no caso dos olímpicos, e virada para a terra, no caso dos deuses ctonianos e dos heróis. Quando os sacrifícios se destinavam aos olímpicos, a vítima deveria ser branca; quando aos heróis e deuses ctonianos, negra, e a vítima sacrificial era completamente queimada, não sendo permitido que qualquer homem vivo comesse um pedaço.

Todos esses fatos ressaltam o valor religioso da morte heroica e dos despojos dos heróis. Ao falecer, o herói torna-se um gênio tutelar que protege a cidade contra invasões, epidemias e outros flagelos. Em Maratona, por exemplo, viu-se Teseu combater à frente dos atenienses. O herói goza de uma imortalidade pela perenidade de seu nome.

No entanto, é importante ressaltar que esse enfoque sublime dos heróis é, sobretudo, helenístico. Há também uma origem aberrante dos heróis, que, como mencionado no início deste artigo, evocam aspectos excêntricos e monstruosos: os heróis massacram por inveja, cólera ou, muitas vezes, sem motivo algum. Eles eliminam até seus próprios pais e mães, são blasfemos, violentos, incestuosos e, não raro, estupradores. Não poupam nem os deuses em sua violência (Órion e Actéon investem contra Ártemis, Ixion ataca Hera, etc.).

Eles não hesitam diante do sacrilégio (como Ajax, que agride Cassandra perto do altar de Atena, ou Aquiles, que mata Troilo dentro do templo de Apolo). Essas ofensas demonstram uma húbris desmedida, um traço específico da natureza heroica. Por conta dessas ofensas, e muitas vezes por cruzarem a linha da coragem para a temeridade, são severamente punidos pelos deuses.

Muitas vezes, os heróis são vitimados pela loucura (como Orestes, Belerofonte e até o excepcional Héracles, ao massacrar os filhos que teve com Megera) e, acentuando seu caráter monstruoso, são frequentemente descritos com proporções aberrantes, com porte gigantesco (como Héracles, Aquiles, Orestes, Pélope), teriomorfos (como Licáon, o “lobo”) ou suscetíveis de se metamorfosear em animais. Alguns são também andróginos (como Cécrope), mudam de sexo (como Tirésias) ou se vestem de mulher em algumas ocasiões (como Héracles). Também são comuns os heróis com acefalia ou policefalia; Héracles, por exemplo, é dotado de três fileiras de dentes; alguns são coxos, caolhos ou cegos.

Toda essa monstruosidade é um traço ambivalente que evoca a fluidez do tempo das “origens”, quando os homens ainda não haviam sido criados.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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