O sacrificio do altar do fogo, Prajapati e a individualidade ocidental

Segundo Mircea Eliade, o sacrifício do altar do fogo na religião hindu, dedicado ao deus Prajapati, além de ter uma intenção cosmogônica e uma função escatológica, é também um meio de obtenção do novo ser.

Ao construir o altar do fogo (agnicayana), o sacrificante se identifica com o deus Prajapati, que uma divindade associada à origem do universo.

Prajapati se torna o altar, e o altar se torna o sacrificante.

Na verdade, segundo o Rig Veda, Prajapati já é todas essas coisas desde o início dos tempos. Ele é o deus que, ao criar, se consumiu, se esgotou e se dispersou. Existe uma interpretação muito interessante de algumas tradições hindus de um deus que “deixou de existir” depois que criou o universo – outras tradições diz que ele “se dispersou”.

Diz-se que, nesse rito, é “fabricado” o atman, esse “novo ser” ao qual nos referimos, que é a reunificação de Prajapati, que foi consumido, esgotado e disperso pela obra cosmogônica.

Em alguns ritos hindus, a uma transmutação de todos os elementos do rito  é, ao mesmo tempo, um desvelamento das coisas “como de fato são”. O sacrificante, o altar, o deus e o sacrifício se combinam e se confundem – porque todas as coisas na realidade, segundo uma interpretação específica de algumas tradições, possuem uma natureza comum ou provêm de uma mesma fonte, de um mesmo deus.

Em muitas percepções indianas, diferente da percepção cristã, esse deus criador parece se confundir com a própria criação.

Aparentemente, tudo, em sua radicalidade, é a mesma coisa – inclusive o próprio deus.

Nos ritos cristãos, temos algo vagamente semelhante no conceito de “In persona Christi”.

Na teologia católica, um padre é “in persona Christi” porque, nos sacramentos que administra, é Deus e Cristo que agem através do sacerdote.

O padre recebe o Sacramento da Ordem, que lhe confere o exercício do ministério apostólico, pelo qual a presença de Cristo como chefe da Igreja se torna visível no meio da comunidade dos fiéis.

“In persona Christi” seria a chave para entender e exercer o ministério de quem preside à celebração litúrgica. O sacerdote atua “personificando Cristo”: pregando, perdoando, consagrando, orando e abençoando em nome Dele. Por isso, no rito da missa, ao levantar a óstia, o padre fala “isso é MEU corpo” – não apenas citando os dizeres de Cristo, mas se colocando naquele momento como primeira pessoa de fato. Por isso, assumir o sacerdócio é assumir uma responsabilidade mortal e, possivelmente, o pior lugar no inferno está reservado aos maus padres.

No Cristianismo, onde Deus de fato se diferencia de Sua criação, essa presença de Deus no sacerdote é tomada como um “empréstimo”, uma “graça”.

Na religião hindu, isso é mais próximo de um fato: se o sacerdote seguir a fórmula dos ritos, isso acontecerá. Não há o componente de “vontade”, “empréstimo” ou “graça”, pois não há, de fato, a diferenciação entre o sacerdote e deus – basicamente, “tudo está em todos”, e o sacerdote, atman, o próprio Prajapati reunido, torna isso evidente.

A percepção disso talvez venha de uma complexa mistura de suposições com a observação, não muito agradável (porém violentamente realista), de um corpo apodrecendo no chão, onde, pouco a pouco, se desfaz e se torna o próprio chão.

Esse é um pensamento de que “tudo está em todos”, que pode ser intrigante no começo e, na perspectiva ocidental, estranhamente magnético – no entanto, não resolve o drama ocidental da individualidade. Especialmente em uma tradição como a nossa, que afirma que tudo vem de Deus, mas que tudo não é Deus.

Dizer, ou sugerir, que a individualidade é apenas uma ilusão, tal como parece fazer os vulgarizadores das escolas Bhakti, definitivamente nunca me impressionou e, para mim, tornou-se um subterfúgio para fugir da responsabilidade de lidar com ela.

Diferente dos tradicionalistas – acho o modernismo necessário, assim como o idealismo kantiano.

Mesmo com a noção de que as coisas parecem se diluir no infinito, assim como um corpo se dissolve no chão, em algum momento essa individualidade existiu. Se algo existiu, deve ser considerado. A eternidade engloba o contingente, não o contradiz.

Os ocidentais, na minha percepção, podem muitas vezes ter enlouquecido, podem muitas vezes ter sido tolos, perigosos, blasfemos ou chegado a conclusões absurdas de um protagonismo fingido – mas nunca fugiram da responsabilidade de resolver essa estranha percepção de que, de fato, existe o eu e o outro.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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