A sobrevivência furtiva de Hermes

Hermes é talvez o deus menos olímpico de todos. Filho de Zeus e da ninfa Maia, ele conserva certos atributos típicos das divindades pré-homéricas: é representado sob o aspecto itifálico, possui um “bastão mágico”, o caduceu, e usa um barrete que o torna invisível. Para imunizar Ulisses contra o feitiço de Circe, ele apresenta ao herói a erva mágica, o môlu. Além disso, Hermes gosta de se misturar aos homens, e sua mais grata tarefa é ser o companheiro do ser humano, como bem disse Zeus na Ilíada (XXIV, 334s).

Hermes também é conhecido como um deus “fornecedor de bens”. Ele é, ao mesmo tempo, um mestre-artesão e um “trickster” (ou trapaceiro, em inglês). Diz-se que toda oportunidade é uma dádiva de Hermes e que ele personifica todo tipo de ardil e trapaça.

Desde seu nascimento, Hermes já demonstrava seu caráter travesso: rouba os rebanhos do irmão Apolo, o que o faz tornar-se o companheiro e protetor dos ladrões. Eurípides o chama de “senhor dos que realizam negócios durante a noite”.

No entanto, é importante destacar que a presença de Hermes na mitologia é bastante diversa. Ele é o padroeiro dos roubos e das aventuras galantes noturnas, mas também é protetor dos rebanhos e dos viajantes que se atrasam nas estradas.

Hermes era, ainda, o deus protetor dos pastores nômades, dos diplomatas, dos comerciantes, da astronomia e da eloquência.

É provável que essa constante associação de Hermes com viagens e sua relação com “caminhos” e “estradas” tenha contribuído para sua função como deus mensageiro e psicopompo, aquele que conduz as almas para seus destinos. Hermes, por si só, é um deus que se desloca, circulando pelos três níveis cósmicos. Como filho de Zeus, ele tem livre acesso ao mundo celestial; como amigo dos homens, ele pode transitar no mundo dos mortais; e, como psicopompo, guia as almas dos mortos ao submundo. Não apenas isso: ele também é capaz de trazer de volta à Terra as almas captivas do submundo, como tentou fazer com Eurídice.

Hermes, como psicopompo, conhecedor das estradas, protetor dos viajantes e deus dos ladrões, é o responsável por conduzir a alma de Eurídice de volta ao mundo dos vivos (ou seja, roubá-la de Hades) em benefício de Orfeu, seu angustiado esposo. No entanto, devido a um erro cometido por Orfeu — ao olhar para Eurídice antes de sair do submundo, quebrando a condição estabelecida — ela é permanentemente perdida no submundo.

Hermes é marcado por insígnias de astúcia, inteligência prática e inventividade (a descoberta do fogo lhe é atribuída), pelo poder de se tornar invisível e viajar por toda parte em um piscar de olhos.

Sua fama lhe conferiu grande prestígio entre aqueles que buscavam dominar as gnoses e ciências ocultas. O termo “hermético” passou a ser sinônimo de quem sabe “orientar-se nas trevas”.

Com a dominação da Grécia por Roma, Hermes foi assimilado ao deus Mercúrio e, através da influência egípcia, sofreu um sincretismo com Thoth, surgindo como Hermes Trismegisto. Essas assimilções tiveram grande importância, criando uma rica tradição e perpetuando sua imagem ao longo dos séculos, até a contemporaneidade, com significativa influência sobre a cultura ocidental e certas áreas orientais ao redor do Mediterrâneo, chegando até à Pérsia e à Arábia.

Assim, sincrético, mutante e deslocante, Hermes sobreviveu de forma furtiva (e convenientemente invisível) até mesmo após a crise da religião clássica, não desaparecendo nem mesmo com o triunfo do Cristianismo, sendo cultuado até o século XVII.

Walter Otto, filólogo alemão conhecido por seu trabalho sobre a mitologia grega, e Mircea Eliade, renomado historiador das religiões, reforçam que, embora Hermes não seja considerado um deus heroico, ele também não é vulgar ou repugnante. Seu lugar é o “não-lugar”; sua natureza é invisível e deslocante — ele incorpora o movimento atravessado que vai do céu ao inferno.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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