Porque sangue é vida – Francis Marin Crawford

Em 1904, Peter Fenelon Collier, editor irlandês-americano e fundador da editora P.F. Collier & Son, terminava de publicar as obras completas de Francis Marion Crawford, escritor nascido na Itália e radicado nos Estados Unidos.

Essas obras, trinta e cinco romances no total, foram lançadas em uma edição completa, apresentando requintadas encadernações com detalhes dourados.

Esta edição já começava com sua estreia extraordinariamente bem-sucedida, Mr. Isaacs: A Tale of Modern India (1882).

Poucos são os autores que recebem a honra de uma edição completa, mesmo tendo apenas quarenta e oito anos, e o conjunto foi um sucesso comercial notável. Ele publicaria mais nove romances antes de sua morte, cinco anos depois.

O romancista Henry James era amigo dos pais de Crawford e, eventualmente, do próprio jovem autor – embora possa ser mais correto chamá-los de rivais, pelo menos na opinião de James.

A sequência ininterrupta de best-sellers de Crawford (e a segurança financeira que o acompanhava) poderia ser fonte de inveja considerável. Em 1884, William Dean Howells informou a James que o terceiro livro de Crawford, To Leeward, havia vendido quase 10.000 cópias, e James soltou com “ferocidades” que poderiam muito bem ser confundidas com inveja:

“O que você me conta sobre o sucesso do último romance de Crawford me adoece e quase me paralisa. Parece-me (o livro) tão desprezivelmente ruim e ignóbil que a ideia de pessoas lendo em tais números faz com que alguém volte a si mesmo e pergunte qual é a utilidade de tentar escrever algo decente ou sério para um público tão absolutamente idiota. É um esforço totalmente inútil. Eu preferiria ter produzido o experimento mais básico do ‘naturalismo’ do que essa farsa de seis centavos. O trabalho de Crawford é tão vergonhosamente ruim que me parece desonrar a arte do romancista a um grau absolutamente imperdoável; assim como seu sucesso desonra as pessoas para quem se supõe escrever.”

Vinte anos depois, embora os dois autores tivessem permanecido amigos e se visitassem na Itália e na Inglaterra, James ainda falava sobre a fama de Crawford em cartas particulares.

O sucesso de Crawford era, talvez, fruto de seu tino comercial afiado.

Na visão de Crawford, a “fórmula de sucesso” para alcançar um amplo público leitor no bazar literário do final do século XIX era uma mistura de romances históricos e romances cosmopolitas ambientados em Nova York e na Europa (especialmente na Itália, onde nasceu e onde viveu como expatriado americano durante a maior parte de sua vida adulta).

No entanto, os mercados são notoriamente inconstantes.

Quase todos os romances de Francis Marion Crawford foram esquecidos há muito tempo, enquanto os romances e histórias de Henry James ainda são lidos e admirados hoje (e, inesperadamente, continuam a ser adaptados para cinema e TV).

O fato de Crawford ainda ser lembrado poderia surpreender seus fãs e detratores – assim como o próprio autor. No entanto, há uma explicação para tal.

Dois anos após sua morte, foram coletados vários contos sobrenaturais, e o legado de Crawford repousa quase inteiramente neles, que são frequentemente antologizados e bem conceituados pela crítica – diferente dos seus sucessos comerciais.

Um dos mais famosos contos de Crawford é “Porque sangue é vida”, escrito em 1905, onde a história gira em torno de uma vampira.

Mulheres e o vampirismo

Hoje a palavra “vampiro” evoca imagens imediatas de homens da corte exalando uma masculinidade aristocrática – sempre altos, morenos e bonitos: Christopher Lee, Bela Lugosi, Brad Pitt, Frank Langella etc.

Mas antes de Bram Stoker a palavra “vampiro” tinha uma conotação quase universalmente feminina: a femme fatale, a sedutora lasciva. Isso é patentemente óbvio nas artes plásticas, onde pinturas que rodeavam esse tema apresentavam a predominância de uma figura feminina.

A pintura de Edvard Munch de 1893, por exemplo, mostra uma mulher ruiva enfiando os dentes no pescoço de um pretendente curvado.

A gravura altamente erótica de 1897 de Sir Philip Burne-Jones mostra uma mulher montada em um homem inconsciente, cantando sobre seu corpo sem vida.

A ilustração de 1899 de Ernst Stoehr mostra uma mulher prendendo alegremente um homem gritando no chão – seus seios nus balançam sob ela, seus olhos e dentes brilham.

A vampira é uma criatura tão antiga na mitologia humana quanto as sedutoras sereias de Homero. Temos a mortificante Medusa e as sanguinárias Lâmia e Strix – mulheres comedoras de homens na mitologia grega – como exemplos aproximados.

Os românticos, que assumiram o manto da antiguidade grega, acabaram por nos apresentar diversas figuras femininas que flertam com o vampirismo. Goethe com a “Noiva de Corinto”, Coleridge com Geraldine (em Christabel), Poe com Ligeia, Morella e Madeline Ushe e, talvez a mais famosa, Le Fanu com a sedutora byroniana Carmilla – a vampira lésbica consumada, que é frequentemente retratada como a contraparte feminina de Drácula (sendo que na verdade é o contrário).

Até Bram Stoker fez de uma vampira o tema principal de sua prequela de Drácula, o que ficou conhecido como “Dracula’s Guest”, que foi escrito como o primeiro capítulo do romance Drácula, de 1897, mas que foi excluído antes da publicação, pois os editores originais acharam que era supérfluo para a história.

Porque o sangue é vida

Porque o sangue é vida (For the Blood is the Life) é uma história de vampiro que certamente deve muito a Keats, Poe e Le Fanu em particular.

Continua sendo um dos contos mais famosos de Crawford, talvez superado apenas por “The Upper Berth”.

Na história, o narrador está visitando seu amigo — um artista escandinavo que vive em uma vila italiana — e os dois desfrutam de um cachimbo em sua varanda, com vista para uma paisagem que é encharcada pela luz da lua.

No crepúsculo, o narrador parece notar um estranho montículo de terra, que parece ser uma sepultura. Seu anfitrião reconhece que é de fato uma sepultura.

Além disso, o visitante jura que vê a figura de uma mulher de branco estendida sobre o montículo — algo curioso, pois, se tratando de um corpo, o correto é estar dentro da sepultura e não fora dela. Isso também não é um truque do luar, o anfitrião lhe assegura calmamente: é um fantasma que aparece ao luar regularmente, mas que só é visível de longe.

O interessante das histórias góticas é que, diante de alguma visão que sugere a existência sobrenatural, a primeira reação natural do homem europeu da época é se refugiar na primeira explicação científica e materialista ao seu alcance. Uma visão de um fantasma em cima do seu túmulo pode ser tudo, um reflexo do luar gerando uma ilusão de ótica que desenha perfeitamente a figura de um corpo em cima de uma sepultura, mas não pode, de forma alguma, ser um fantasma — pois “estas coisas não existem”.

Para provar seu ponto, ele caminha até o túmulo e fica onde a figura estava. Ainda capaz de vê-lo, o narrador fica horrorizado ao testemunhar a “coisa” — invisível para seu anfitrião — se contorcendo suplicante para cima e para baixo.

Totalmente atordoado, o convidado exige conhecer a história de fundo dessa figura trágica.

O estoico artista conta sobre o dramático assassinato de Cristina pelas mãos de dois ladrões, enquanto estes fugiam com a herança de Angelo, um homem a quem ela cultivava um amor platônico.

Selvagem e sensual enquanto viva, seu fantasma vampírico retornou do túmulo para cortejar Angelo em sua mortalha.

Deprimido com sua pobreza repentina, Angelo aceita as propostas do belo fantasma — uma mulher que ele acredita ser o objeto de um sonho — e os dois consumam seu amor em seu túmulo.

Quando Angelo acorda, no entanto, ele se vê no chão úmido, e fica cada dia mais claro que seu pesadelo tem mais realidade do que ele gostaria de confessar. Mesmo assim, ele não consegue resistir aos encontros.

Ao longo do restante da história, o artista detalha como os encontros necrófilos de Angelo o levaram à miséria eterna.

No folclore europeu, há muito mais maneiras de uma pessoa se tornar um vampiro do que através de uma mordida infectada ou uma barganha satânica.

Algumas das causas mais populares de vampirismo são o suicídio (provavelmente a MAIS popular), morrer ainda virgem, morrer jovem, ser assassinado, tentar atos sexuais exóticos, participar de feitiçaria ou — podem acreditar — ter seu cadáver saltado por um cão ou gato antes do enterro.

Cristina era cigana, sedutora (existe uma ênfase do conto em descrever seus lábios vermelhos — mesmo depois de morta), cobiçava Ângelo com pecado (ele era prometido a outra mulher) e morreu de forma violenta — existe aqui uma combinação de fatores que, segundo o folclore europeu, viabilizaram sua transformação em uma vampira.

No entanto, muito além da própria exposição do terror folclórico, os contos de vampiro conseguem conduzir metáforas a respeito dos dramas humanos e do pecado. Em “Porque sangue é vida” de Crawford, orbitam os seguintes temas: magnetismo sexual, lascividade, erotismo, depressão, necrofilia, ambição, ganância, cobiça, herança maldita, superstição, bem, mal e ruína econômica — coisas muito presentes no mundo dos vivos.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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