Os paradoxos em Ghost in the Shell

Gilbert Ryle introduziu o conceito do “fantasma na máquina” em seu livro “O Conceito da Mente”, de 1949. O autor argumenta que a “mente” é uma “ilusão filosófica” vinda principalmente de René Descartes, sustentada por erros lógicos e conceituais. No capítulo “O Mito de Descartes”, Ryle apresenta “o dogma do fantasma na máquina” para descrever o conceito filosófico da “mente” como uma entidade separada do corpo, como se esta pudesse ser isolada dos “processos físicos”. Como filósofo linguístico, uma parte significativa do argumento de Ryle é dedicada a analisar o que ele percebe como erros baseados no uso conceitual da linguagem. Para ele, Descartes cometia um erro específico de categoria.

Em “Ghost in the Shell”, Shirow Masamune faz uma espécie de revisão crítca do conceito de Ryle.

Aqui, a parte mais significativa da existência se confunde com a mente num tecido intercambiável de informações, significados e consciência.

O corpo, dentro desse ponto de vista, é uma mera contingência material, um receptáculo. Isso significa que, nessa perspectiva, um corpo pode ser modificado, substituído ou até mesmo descartado – afirmando que é possível, sim, ter uma existência separada do corpo.

Ele não é você, apenas “contém você”.

Major Motoko Kusanagi, personagem principal da história, é um ser humano que passou por extenso aprimoramento cibernético, a ponto de todo o seu corpo ser sintético. No entanto, as suas experiências, emoções e dúvidas sobre a sua identidade destacam a presença persistente do seu “fantasma”.

Mesmo completamente alienada do seu próprio corpo, podemos dizer que “ela ainda era ela” por conta dessas experiências, emoções, vontades e indagações.

Essa indefinição sobre a categoria das coisas, que foi a principal crítica de Ryle contra Descartes, em “Ghost in the Shell” define boa parte dos momentos mais introspectivos dos personagens (que no mangá são raros, mas significativos), quando eles se questionam se existe ou não uma diferença cartesiana entre humanos e androides, hardware, software e interface, vida e não-vida, consciência e inconsciência.

Shirow Masamune nesta obra também sofreu influências de um autor budista chamado Akira Sadakata e, especificamente, de um livro chamado “Shumisen to Gokuraku”, no qual há uma descrição da concepção Mahayana do universo como uma flor de lótus contendo incontáveis reinos, cada um com seu próprio Buda.

O que Shirow interpretou desse livro e trouxe para “Ghost in the Shell” foi a ideia de cópia e replicabilidade como um modelo de expansão de um indivíduo no espaço-tempo. Em suma, aquilo que conhecemos é apenas uma pétala de uma flor de lótus, como tantas outras.

A ideia da falsa distinção entre o que é ser original e o que é ser uma cópia ganha voz num misterioso personagem chamado “Mestre dos Fantoches”, que seria uma inteligência artificial  (ou um vírus) tentando invadir e sobrescrever a mente de Motoko, que no momento se encontrava sem o seu corpo.

A mente de Motoko seria, no final das contas, ela mesma e ao mesmo tempo esse misterioso “fantasma” tentando dominá-la, tal como um demônio. Uma das coisas mais fascinates na ficção-científica é que apesar da sua projeção no futuro, tudo que ela faz é requentar com outra estética e linguagem a mesma percepção religiosa da existência que nos acompanha desde a pré-história.

Sabendo que a questão da identidade era algo valorizado pela Major Motoko em seus momentos de introspecção, o Mestre dos Fantoches invade a mente dela e apresenta o argumento da falsa equivalência entre identidade e unidade. Se o que te define são basicamente informações e se essas informações podem ser armazenadas, transferidas e copiadas como um backup, então o que sobra da nossa noção de individualidade única?

Quando o “Mestre dos Fantoches” tentou se fundir com Major Motoko em uma única mente, argumentou que a individualidade é uma ilusão (tanto para ela quanto para ele) e que tudo no universo se comporta replicando sucessivas cópias de si mesmo – tal como uma célula que faz sucessivas divisões de si mesma até se tornar o corpo do que ilusoriamente identificamos como um indivíduo único.

A dinâmica que Masamune utiliza é de um ataque cibernético. O “firewall” de Motoko seria sua sólida noção de individualidade, a única coisa que impediria o “Mestre dos Fantoches” se fundir em sua mente e tomá-la por completo.

Se ela aceita alienar sua mente (tal como fez com seu corpo), aceitando os argumentos do “fantoche”, o “firewall” é derrubado e a existência de Motoko é oficialmente eliminada.

Ghost in the Shell é sustentado por paradoxos. O “mestre dos fantoches” é tão lógico quanto cínico. Se a individualidade não importa, por que ele escolheu Motoko especificamente como seu vetor?

Outra indação possível desta obra é sobre a matéria (como um todo, não um corpo específico) ser realmente dispensável. Se ela não é importante, por que ela existe e por que ela se torna o objeto de desejo de posse desses fantasmas?

Ghost in the Shell pode ser acusado pelos conservadores pelo transhumanismo latente e pelos progressistas pela objetificação do corpo feminino, dado que Masamune era obsecado por ângulos fetichizados de mulheres magras de maiô e collant. Eu não tenho absolutamente nenhum problema com nenhuma dessas coisas.

No entanto, Ghost in the Shell definitivamente não cai numa mera vulgaridade gnóstica e o crédito disso é o background budista do autor e suas poucas (mas significativas) considerações sobre Deus em suas notas pessoais (estranhos tanto do ponto de vista de um budista, quanto de um japonês).

Seria libertador para o autor descobrir a noção tomista-aristotélica (ou equivalente) de intercambialidade de corpo, mente, alma e espírito são mais complexas que a divisão cartesiana e a solução de Ryle.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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