Na época dos Juízes, que é a época desde quando o grupo de Moisés entrou em Canaã até a proclamação de Saul como rei, houve no processo histórico que culminou na gradual associação Javé-El, anteriormente entendidos como deuses diferentes, até a unificação completa dos seus santuários.
No entanto, a figura permanente, curiosa e até obscura, que sempre persistiu na imaginação deste povo, é Baal, que alternava de forma incrível entre a associação dele com o “inimigo” e um ser com correlação divina.
Encontravam-se nomes compostos com “Baal” mesmo em famílias de renomada fé javista. O famoso Gedeão chamava-se também Jerobaal, “Baal combate” (Juízes 6:32). Isso reforça a dupla associação de “Baal” como um epíteto de “senhor”, além da figura mística cananeia, figurando o “deus da terra e da fecundidade”.
O que sabemos é que a figura de Baal foi mais ou menos tolerada entre os israelitas em momentos distintos e as prescrições em relação a outros deuses divergiam ao longo da história, assim como o entendimento da posição de Deus em relação ao panorama cósmico.
Deus era único ou o maior de todos? São duas afirmações completamente diferentes e há as duas versões no texto bíblico.
Por isso mesmo, desde o começo, é a tradição a base do sentido canônico do texto, não o contrário. Embora Mircea Eliade classifique a religião de Israel como a religião do livro, essa noção não deve ser entendida como a religião da “literalidade” ou algo do tipo.
Sabemos que a exegese bíblica, especialmente do Antigo Testamento, é complicada pela quantidade de gêneros literários abrangidos: você encontra mito, poesia, saga, lenda, conto, fábula, alegoria, parábola, epopeia, salmos, historiografia, livros legislativos, sapienciais e proféticos.
Também sabemos que ela é complicada porque fere muito nossa sensibilidade moderna, pois está cheia de histórias de massacres impiedosos.
O que torna ela ainda mais complicada é que ela também é um relato de desenvolvimento sincrético assumido, no qual os israelitas, além de sua própria identidade, assumiam cultos de outros povos, como práticas cananeias relacionadas à agricultura e até mesmo ritos orgiásticos.
Os santuários eram construídos de acordo com os modelos cananeus. Abrigavam um altar, messebah (pedras erguidas), asherah (postes de madeira que simbolizavam a deusa cananeia de igual nome), vasos de libações. Entre os objetos rituais, citam-se os mais importantes: os terafim (imagens ou máscaras) e os éfodes (mantos colocados sobre as imagens) – todos de origem estrangeira.
Em torno dos santuários, o culto era organizado por sacerdotes, levitas (músicos sacerdotais), videntes (ro’eh) e, o mais interessante de todos, os profetas (nâbiim) – que não se confundem com os adivinhos e que entrariam em conflito com todos os outros.
Era uma composição multiforme de sistema ritual de sítios sagrados e uma espécie de xamanismo que vivia em conflito e em crise de identidade. Uma religião com características pastoris, nômades, militares e sedentárias ao mesmo tempo.
Em suma, a exegese bíblica é complicada, além de tudo, pois vai obrigar qualquer um que se meta a ser fundamentalista a lidar com o maior de todos os seus pesadelos: o contexto.