Teriantropia, é um termo genérico utilizado para denotar uma divindade ou criatura que combina em si atributos de humanos e animais.
Existe uma longa cadeia de tradições religiosas antigas que fazem essa associação do homem com o animal em diversos níveis e em diversos contextos.
Para as religiões mais antigas, essa associação vai representar a identificação totêmica entre caçador e presa.
Algumas religiões costumam utilizar a teriantropia como uma espécie de recurso mito-poético para metaforizar a liminaridade da natureza humana e animal.
Engana-se quem acha que esses recursos teariantropos são exclusivos do universo das religiões pagãs ou pré-cristãs.
O Cristianismo costuma identificar em alguns animais a representação de certas virtudes e valores. Temos, por exemplo, Cristo identificado como cordeiro ou como um leão. Há também associações de Deus como um pelicano. Nas catedrais góticas católicas você provavelmente verá as imagens de um touro, de um leão e de uma águia ao redor da figura de Cristo – que vão representar respectivamente os evangelistas São Lucas, São Marcos e São João.
Além das mencionadas tradições simbólicas, filosóficas e mito-poéticas, a teriantropia pode abranger também os antropomorfismos, as personificações ritualísticas e as transmutações.
Esta última é muito conhecida nos folclores populares, sendo a licantropia (transformação do homem em lobo) a mais famosa.
Um “primo” menos conhecido da licantropia é a ailuratropia – que é a transformação de humanos em figuras felinas.
É muito curioso notar que o ser humano precisa constantemente se comparar a outros animais para se entender melhor como ser humano.
É muito curioso observar que utilizamos outras espécies como ferramentas didáticas para explicar algumas de nossas próprias características, como se os nossos próprios atributos (e a percepção deles) não fossem suficientes.
Isso coloca nossa espécie num lugar único em relação a existência. Um lugar onde podemos contemplar a percepção, quase instintiva, de que a resposta para nos entendermos melhor está além de nós.
No cinema e na literatura, há diversos exemplos deste recurso sendo utilizado.
Aqui vamos falar um pouco do filme Cat People, tanto a sua versão original de 1942 quanto o seu remake feito 42 anos depois.
Cat People (1942)
Cat People (também conhecido no Brasil como Sangue de Pantera) é um filme de terror americano de 1942 dirigido por Jacques Tourneur e produzido pela RKO, uma famosa produtora e distribuidora americana de filmes de baixo orçamento.
O filme conta a história de Irena Dubrovna (Simone Simon) uma designer de moda sérvia recém-chegada na América.
Irena se apaixona por um arquiteto naval chamado Oliver Reed (Ken Smith), com quem se casa, mas não consegue consumar o casamento pois está obcecada com a ideia de que ela é descendente de uma antiga tribo, que ela chama de Cat People, composta por bruxas e bruxos que se transformam em panteras negras quando sexualmente estimuladas.
Este filme se tornou um clássico e motivou discussões diversas a respeito da repressão da sexualidade feminina e xenofobia.
Irena é desde o início marcada como estrangeira e essa será uma de suas características mais distintivas em relação aos outros personagens do filme.
Tanto neste filme quanto no romance gótico em geral, ser estrangeiro significa assumir a posição do “outro” no emaranhado mapa de características possíveis de um personagem. Drácula de Bram Stoker, por exemplo, pode ser analizado como a antítese do que significa ser inglês.
Irena, por sua vez, é a antitese do que significa o modelo de feminilidade estadunidense e isso traz para ela uma série de dramas de adaptação e identidade.
A personagem principal, que é protagonista e antagonista ao mesmo tempo, busca se encaixar no ideal da normalidade americana, mas percebe que é inútil. Aos olhos de todos, inclusive aos olhos do próprio marido, ela sempre será a estrangeira.
Durante todo o filme ela convive em um limiar fronteiriço da luz e da escuridão, uma batalha interna, até sucumbir ao que filme entende como sua natureza.
O sexo
Quando foi lançado em 1942, o filme Cat People trazia consigo diversas metáforas subliminares sobre sexualidade (especialmente a sexualidade feminina).
Através de um enredo que tratava de questões sobrenaturais e folclóricas de ailuratropia, a obra desenhava linhas paralelas entre humanidade e animalidade, entre civilização e selvageria, entre cristianismo e paganismo (bem ao gosto de Camile Paglia).
Segundo Camile Paglia, os felinos (especialmente os gatos) são essencialmente ciraturas da noite. Eles vivem nas sombras, fazem emboscadas e, quando tem êxito numa caçada, brincam com a presa até se sentirem entendiados. Só depois de uma longa e aflitiva tortura eles a matam.
Suas brincadeiras possuem um elemento de crueldade camuflada. Uma crueldade que não se enxerga como algo bom ou ruim, definições que ficariam mais claras no advento do Cristianismo, mas como uma representação da natureza ctônica e amoral.
Todas essas características recônditas do felino, somado a sinuosidade dos seus movimentos, se tornaram metáforas perfeitas para sexualidade feminina, sempre colocadas no viés de perigo e morte em praticamente todas as mitologias já feitas (desde os mitos de Yuki-onna no Japão até as Sereias na Grécia).
Não é aleatório que personagens como Cat Woman (do Batman) sempre tiveram uma potência erótica latente, ao mesmo tempo que sinalizavam grande perigo.
A dimensão do sexo e da violência em Cat People só pode encontrar sua definição perfeita na correspondência do animal com o humano.
A libidinosidade reprimida de Irena no filme se traduz na transmutação em uma pantera. Uma maldição que está além da suas próprias escolhas. Uma sexualidade que sugere poder e perigo – algo que inutilmente tentamos enjaular e controlar.
Enfim, intencionalmente ou não, o filme apresenta uma enormidade de discussões vívidas sobre a natureza humana.
Cat People (1982)
O filme original é um clássico absoluto. No entanto, talvez pela época, era preciso cerrar um pouco mais os olhos para ver na personagem principal todas as questões sobre sexualidade com clareza, algo que não ocorre no remake de 1982, dirigido por Paul Schrader e estrelado por Nastassja Kinski, Malcolm McDowell, John Heard e Annette O’Toole.
São quarenta anos de distância entre uma versão e outra. Nesse hiato de tempo tivemos o fim da Segunda Guerra Mundial, o nascimento do Rock and Roll, Woodstock, Concílio Vaticano II, a morte de Stalin, recrudescimento da Guerra Fria e o nascimento da Nova Holywood.
Tudo aquilo que estava sugerido na versão de 1942 aqui é explícito. Tanto a violência quanto a sexualidade.
Muitos críticos consideram esse remake uma mera versão mais sensacionalista e “art-porn” do filme original.
Pra mim, isso não é demérito. O que o filme perdeu de sutileza ganhou em estilo.
Tudo aqui é “cool”. Desde os efeitos visuais experimentais até a trilha sonora, cantada por David Bowie.
Um filme não precisa competir com o outro, nem mesmo os remakes. As duas versões pra mim se equivalem e se complementam. Cat People de 1942 tem um valor histórico maior e seus méritos pionerísticos e criativos são inegáveis, mas a versão de 1982 viabiliza aquilo que a versão original teve que esconder nos artifícios de sugestão.