A Inteligência Intuitiva do Homem Comum

Ortega y Gasset disse que sempre que nos colocamos teoreticamente diante de qualquer coisa, descobrimos que elas nunca se explicam a si mesmas. Elas sempre retornam para nós como problema, como algo a ser resolvido.

Isso é válido para história, para ciência, para filosofia e também para o conhecimento de Deus.

Tudo é oculto.

Somos enigmas até para nós mesmos.

Não é gratuito que existam antiquíssimas tradições orientais dedicadas ao autoconhecimento.

Essa é a nossa natureza.

Não vemos uma coisa e temos uma explosão intuitiva, como teorizou São Tomás de Aquino a respeito da inteligência angélica.

Diferente dos anjos, raciocinamos de um ponto a outro (pois estamos no cativeiro da realidade temporal, onde as coisas estão presas numa certa ideia de linearidade, causa e consequência, antes e depois, passado e futuro), tentamos criar um encadeamento lógico entre todos os pontos, pensamos discursivamente e fazemos silogismos.

Tudo isso mais atrapalha do que ajuda, ao mesmo tempo que é o único recurso que temos para pensar sobre qualquer coisa.

No entanto, a gente não consegue viver sem tentar entender as coisas. Estamos, de certa forma, condenados pela curiosidade ou estamos sendo atraídos por força magnética que nos puxa pra cima, como se parte de nós tivesse uma consciência divina e que foi amputada.

Neste sentido eu quero trazer o filme “O Conto da Princesa Kaguya” de Isao Takahata, do Studio Ghibli.

Neste filme, temos a história de uma princesa chamada Kaguya. Essa princesa desce do céu, como uma dádiva da Lua, brota dentro de um brilhante talo de bambu e é prontamente reconhecida por um homem simples do campo.

Kaguya, mesmo vivendo com os mortais, sentindo como os mortais, tendo que se submeter a todo um universo de cerimônias escravizantes, não deixa de manifestar, ora ou outra, sua natureza superior: ela toca maravilhosamente o koto sem nunca ter aprendido, demonstra saber os rígidos códigos de etiqueta de uma hora para outra e, desde a tenra infância, sabe a letra da canção Warabe Uta.

Não existe nela o êxito do esforço e da dedicação, pois a curva de aprendizado seria própria da nossa natureza.

Vou me arriscar aqui a fazer uma tradução transcultural, partindo de uma animação japonesa baseada na religiosidade pagã oriental, para encontrar correlatos em aspectos ponuais da teologia católica ocidental.

Kaguya teria o que São Tomás de Aquino entende por natureza angélica ou divina, pois ela aprende tudo pela intuição, pela realidade das coisas que se apresentam a ela na sua completude, sem que ela precise decifrar, fazer encadeamentos lógicos.

Sua inteligência é a inteligência intuitiva, assim como, de certa forma, é a inteligência do homem simples que a reconheceu (embora seja ainda uma inteligência intuitiva imperfeita).

Existe uma profusão imensa de símbolos que podemos analisar aqui (o símbolo da Lua, do talo de bambu, da aristocracia sagrada que desce dos céus), mas, dentre todas as ideias contidas nesta pequena sinopse, a mais interessante é a ideia de que apenas um homem simples poderia reconhecer tão bem um deus.

Isso dentro do catolicismo é incrivelmente comum.

As aparições marianas sempre tiveram uma preferência pelas pessoas mais simples, especialmente as do campo. Podemos listar aqui São Juan Diego, um indígena que viu Nossa Senhora de Guadalupe e vivia na Cidade do México em 1531. Podemos citar a Nossa Senhora da Boa Saúde que apareceu para dois jovens pobres indianos e alguns marinheiros portugueses. Isso sem contar os três pastorinhos de Fátima.

Podemos entender o homem simples como aquele que está mais próximo do estágio edênico, ou seja, não está tão envenenado pela dúvida. Aquele que, pela fraqueza de sua inteligência racional, foi obrigado a complementar seu entendimento sobre as coisas por uma inteligência mais intuitiva, que se assemelha um pouco mais à inteligência angélica, aquela descrita por São Tomás de Aquino.

Não que a inteligência racional seja algo ruim, mas percebemos que, ao longo da história, começamos a acreditar que podemos reduzir a realidade ao experimento (o imperialismo da física, que José Ortega y Gasset fala) e, com isso, acabamos dando a essa inteligência a última palavra sobre o entendimento da verdade.

Se um homem racional visse Kaguya brotando de um talo de bambu, ele não teria a adequada reverência que um homem do campo teve. Ele se assustaria, pensaria estar louco e colocaria diante de si todas as explicações possíveis antes de considerar o óbvio, de que ele está diante de algo sagrado.

Em suma, diante do mistério, a única coisa que poderíamos fazer é contemplar.

 

 

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