Memórias Póstumas de Brás Cubas. Se você é brasileiro, provavelmente já ouviu falar desse livro, especialmente porque ele figura entre as leituras obrigatórias para jovens que desejam prestar vestibular.
A obra foi publicada pela primeira vez em folhetim (para quem não sabe, são narrativas literárias seriadas em periódicos) na Revista Brasileira de 1880 e, posteriormente, lançada como livro pela Tipografia Nacional.
O primeiro impacto dessa obra é, obviamente, seu conceito: trata-se de uma narrativa fictícia escrita por um autor defunto. Sim, um autor que já morreu e resolveu, postumamente, escrever suas memórias.
Logo no início, nos deparamos com uma das dedicatórias mais interessantes da história da literatura mundial. Talvez a dedicatória mais interessante de toda a literatura:
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.
O livro segue com uma história e um estilo livre, audacioso, cáustico, metalinguístico e filosófico.
É livre e audacioso não apenas por se permitir digressões, flashbacks e interrupções constantes, mas até por dispensar completamente o uso tradicional da linguagem (como em “Capítulo LV – O velho diálogo de Adão e Eva”), moldando a literatura pela pura força do contexto e da sugestão. E, meu Deus, como Machado de Assis é bom nisso. Ele consegue se fazer entender até mesmo em um diálogo sem palavras.
Seus capítulos, normalmente curtíssimos e fragmentados, reforçam a todo momento a sensação de liberdade formal. Machado de Assis, definitivamente, não é homem de desperdiçar palavras. Se o capítulo precisa de apenas um parágrafo, um parágrafo ele terá.
O mais interessante é que essa forma livre não é uma percepção minha ou de qualquer outro crítico, mas do próprio autor. Seu estilo é constantemente anunciado por meio da quebra da quarta parede. O narrador, com frequência, se dirige ao leitor, criando um efeito de intimidade e provocação.
Há diversos momentos metaliterários em que Brás Cubas comenta e defende suas escolhas narrativas. Ele se justifica sem remorsos, afinal, o remorso já não lhe cabe na condição de morto. Pode filosofar sobre a morte, a vida e a própria literatura sem a prisão do método, inserindo reflexões aqui e ali, no meio da narrativa. Se você não gostar, ele te paga com um “piparote”.
Os constantes enxertos filosóficos, aliados à experiência biográfica e ao tom confessional da obra – como já disse antes – são puro reflexo da influência de Santo Agostinho em Machado de Assis. Brás Cubas se esbalda em comentários sobre a história, a sociedade de sua época, a religião, o fingimento e, como é próprio de sua condição, sobre a morte – esta que sempre traz à tona, como bem diz Mircea Eliade, a consciência tanto do fim quanto do “depois do fim”, inerente à condição humana.
A obra é, também, como eu disse, cáustica. Não no sentido amargo ou corrosivo de uma crítica meramente sombria, mas numa ironia ao mesmo tempo cômica e melancólica. Brás Cubas escreve, como ele mesmo afirma, com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Em suma, lendo e relendo, Memórias Póstumas de Brás Cubas é, sem dúvida, um dos motivos que me fazem ter orgulho de ser brasileiro.