Segundo Hesíodo em “Os Trabalhos e os Dias”, deuses e mortais têm a mesma origem e, portanto, partilham uma mesma experiência na realidade, que também poderia eventualmente se traduzir em algumas coincidências cósmicas.
Assim como houve várias gerações divinas (aquelas sob o domínio de Urano, depois Cronos, depois Zeus), havia também gerações humanas: a raça de ouro, prata, bronze, a raça dos heróis e a raça de ferro.
A primeira raça de homens, a de ouro, vivia sob o reinado de Cronos, e era exclusivamente masculina.
Foi a única raça que conviveu perto dos deuses.
Os homens dessa época viviam a salvo de dores e misérias. Eles não trabalhavam, pois o solo lhes oferecia tudo que necessitavam. A vida transcorria em meio a danças, festas e divertimentos variados.
Eles também não conheciam a velhice ou a feiura. Seus corpos eram perfeitos o tempo todo. Sempre jovens, sempre atléticos, sempre magros.
Quando morriam, era como se estivessem adormecidos.
Depois da era de ouro dos homens, homens (e só homens, tá?) exclusivamente belos, atléticos, magros e eternamente jovens – amigos dos deuses e dados ao prazer, houve a queda de Cronos (regente desta era de delícias).
Com a queda de Cronos e a ascensão de Zeus como novo cosmocrata, os homens da raça de ouro foram eliminados e cobertos pela terra.
Então os deuses produziram homens menos nobres – os homens da idade de prata.
Em razão dos seus pecados e também porque não queriam sacrificar aos deuses, Zeus resolveu eliminá-los.
Os deuses fabricaram então a terceira raça, a de bronze: homens violentos e belicosos, que acabaram matando-se uns aos outros até não restar nenhum.
Depois, Zeus fabricou uma nova geração, a dos heróis, que se tornaram ilustres graças aos grandiosos combates às portas de Tebas e em Tróia.
As sucessivas eras nas religiões são geralmente pontuadas por uma ideia de sucessivas decadências.
Isso não é diferente entre os gregos.
No entanto, uma coisa curiosa é que os heróis parecem ter mais virtudes do que os homens da geração anterior (de bronze), ao mesmo tempo que assimilam algumas de suas características mais notáveis (como por exemplo a violência).
Aliás, nos heróis existe uma certa composição mista ainda das gerações anteriores: uma certa altivez dos homens de ouro e uma certa inflexão dos homens de prata – homens de grandes virtudes (estéticas e morais), mas que desafiam os deuses, são relativamente comuns nessa raça. Não é à toa que a vida de Hércules seja uma vida de provação e a de Prometeu uma vida de tragédias. São como se fossem “homens de ouro” vivendo deslocados num mundo de sofrimento.
Apesar da ideia das eras serem ainda válidas, na concepção grega não há uma ideia de decadência necessária relativa ao decorrer do tempo. Há virtudes que ainda podem retroagir ou ressurgir em eras posteriores, além de outras características que podem aparecer na experiência cumulativa de eras anteriores.
A era dos heróis é o único momento onde se interrompe o processo de degradação progressiva, pois visa dissimular uma escatologia que os coloca também na rota de uma existência beatífica, na ilha dos Bem-Aventurados, no Elísio agora governado por Cronos.
Em certa medida, os heróis recuperam a existência dos homens da idade do ouro sob o reinado de Cronos. Essa escatologia será amplamente elaborada mais tarde, sobretudo sob a influência do orfismo.
O Elísio não será mais privilégio exclusivo dos heróis, mas se tornará acessível às almas dos piedosos e aos “iniciados”. Para entrar lá, uma pessoa geralmente precisaria ter levado uma vida virtuosa, ter sido justificada por seus feitos ou ter recebido honras especiais, como um herói ou alguém que foi favorecido pelos deuses.
Por fim, temos os homens da idade do ferro, que sucedem a era dos heróis. Essa última idade Hesíodo só menciona brevemente – ele apenas lamenta ter nascido nesta época – ou seja, a idade do ferro é a era dos homens contemporâneos, a época de Hesíodo e a nossa.
Essa tradição da decadência que se instala progressivamente, normalmente em quatro etapas (apesar de Hesíodo colocar um breve interlúdio de solavanco ascendente na idade dos heróis) lembra a doutrina indiana dos quatro yugas, ou o sonho de Nabucodonosor (Daniel 2:32-3) e em alguns textos iranianos tardios.
Convém acrescentar que o mito das idades sucessivas não representa a opinião unânime referente à origem dos homens. Havia também outro mito corrente (embora tardio), do homem sendo feito do barro, modelado por Prometeu.
No entanto, a ideia de decadência e separação dos homens e deuses era uma ideia comum – assim como é comum, entre os poetas e religiosos, o tom lamurioso e nostálgico.
Toda essa mitologia, obviamente, foi distorcida politicamente, o que deve ser típico dos homens da idade do ferro. Convém dizer que, na época de Hesíodo, muitas famílias consideravam-se descendentes dos heróis e se diferenciavam dos outros (descendentes das formigas e dos freixos) para justificar privilégios indevidos.
Hesíodo recupera a religião grega, ao mesmo tempo que desnuda o discurso dos mentirosos, manipuladores, falsificadores e egoístas – nós, homens da idade do ferro, herdamos a astúcia, mas não a moral dos heróis.