Tudo sobre Lily Chou Chou é um filme japonês de 2001 escrito e dirigido por Shunji Iwai que conta a história de vários estudantes ao longo de sua adolescência. O filme se ambienta no começo dos anos 2000, onde a cultura das redes sociais ainda estava embrionária, sendo manifesta nos famosos chats e salas de bate-papo online.

Além dos problemas, a vida desses adolescentes são permeados por uma enigmática artista chamada Lily Chou-Chou que, que vai conectar todos os personagens do filme (sendo os principais Shūsuke Hoshino e Yūichi Hasumi), se tornando o ponto convergente entre todos eles.

Temos aqui um típico filme “coming-of-age”, que mostra um painel confuso e fragmentado de vidas de adolescentes que se entrelaçam e se conectam, onde autodescoberta e a descoberta do outro se intensificam numa necessidade contraditória autoafirmação de identidade com necessidade de pertencimento, além das estimulantes e traumáticas descobertas do desejo sexual. Tudo isso numa época em que a cultura digital ainda nascente.

A linha do tempo do filme, como se rimasse com toda essa ideia de fragmentação, não é linear. Começamos no meio da história, que se localiza logo antes do segundo semestre escolar, depois o filme volta para o primeiro semestre e as férias e, depois, se encerra no presente. Como se alguém estivesse olhando um álbum de fotos aleatoriamente.

Toda história é permeada por conflitos diversos, alguns leves e até cômicos, até outros mais pesados. Aliás, o filme borda coisas muito, mas muito pesadas.

Apesar do Japão ser conhecido como uma das sociedades mais seguras e ordenadas do mundo, a latência da violência da sociedade parece ter sido escoada para a vida escolar.

O bullying é considerado um dos problemas sociais mais graves no Japão. É um dos países com as maiores taxas de suicídio infantil no mundo.

Tudo sobre Lily Chou Chou nos oferece um painel de como é o bullying nesse país: uma importunação agressiva e constante, que pode ser estender por anos, estigmatizando a pessoa e isolando-a de qualquer possibilidade de convivência normal.

Estamos falando aqui de um nível psicopático de bullying, onde não há apenas de xingamentos, mas humilhações sexuais e até estupro e exploração sexual (uma das alunas, que comete suicídio no filme, é coagida a se prostituir).

Por falar nisso, o Japão é bastante problemático culturalmente em proteger meninas de predadores sexuais e pedófilos.

Uma das personagens, Shiori Tsuda, é chantageada por Hoshino a praticar o Enjo kōsai, uma prática escandalosamente comum no Japão, onde garotas colegiais são pagas por homens mais velhos para os acompanhar em saídas ou, algumas vezes, para lhes prestarem serviços sexuais.

Muitos sociólogos, especialmente fora do Japão, veem este fenômeno como uma forma de prostituição, embora nem sempre esses encontros impliquem em atividades sexuais. Às vezes, tais saídas envolvem apenas jantares ou andar de mãos dadas. Outras vezes, há atividades sexuais que não envolvem o contato genital propriamente dito.

A prostituição é ilegal no Japão desde a década de 1950, apesar de que a definição de prostituição é estrita, abrangendo tão somente os contatos entre os órgãos genitais.

Leis especiais sobre prostituição de menores no país foram criadas apenas nos anos 90. No entanto, o enjo kosai não foi regulado pelo governo japonês, já que não se enquadra na definição legal de prostituição, a menos que o cliente explicitamente pague à garota por sexo (o que é raro, devido à natureza indireta das transações). Uma vez que a idade de consentimento no Japão varia entre 13 e 17 anos, conforme a jurisdição, os clientes não podem ser acusados de abuso de menores.

O Japão nunca foi uma sociedade que tutelou pelas suas crianças e temos exemplos históricos disso. Quando Nagasaqui esteve sobre a administração da Coroa Portuguesa, entre 1580 e 1586, a própria noção de preservação da infância teve que ser introduzida no país pelos portugueses mediante um código civil e criminal que proibia a exploração infantil.

Os relatos pormenorizados Luís Fróis no Japão por meio de cartas enviadas para Macau remontam com clareza esse cenário.

No filme, os professores parecem bastante solícitos diante dos problemas dos alunos, mas o próprio modelo educacional japonês (e o próprio modelo de sociedade japonesa) parece favorecer o cenário.

A tutela das notas é rígida enquanto a dos comportamentos é negligenciada. Tudo o que importa, no final das contas, é o desempenho.

O desenvolvimento dos personagens na trama acontecem sucessivamente por meio das sucessões de eventos bruscos e traumáticos. Shūsuke Hoshino, um dos personagens principais do filme, por exemplo, tem uma experiência de quase-morte enquanto estava de férias em Okinawa e muda completamente sua personalidade, mudando de garoto bem-comportado para um bully perigoso, manipulativo e cruel. Ao mesmo tempo que essa mudança foi sua maneira de sobreviver no ambiente escolar, ela também é a representação de tudo aquilo que ele reprimia em si enquanto era vítima.

Em meio de tudo isso, temos o amparo da música etérea de Lily Chou-Chou, e a sua fanpage, aonde todos os alunos, por meio de pseudônimos, conversam entre si.

Vi muita gente dizendo que o filme é um alerta contra a cultura digital, mas nem de longe é isso. A cultura digital se tornaria um problema mais grave anos depois. No contexto do filme, o mundo digital é um refúgio. Os fóruns e salas de bate-papo são os únicos momentos em que vemos essas pessoas de fato conversando e compartilhando seus problemas.

Obviamente isso é problemático, pois se desenvolveria num outro grande problema social do Japão: jovens que não conseguem viver fora do mundo virtual, mas até aquele momento, a conversa online por meio de pseudônimos era o contato mais próximo que esses jovens tiveram da realidade de um confessionário.

Aliás, o modelo de confessionário católico tradicional, que favorece a conversa e, ao mesmo tempo, o anonimato entre o confessor e penitente através da treliça, é o mesmo reproduzido (e posteriormente pervertido) nas salas de bate-papo online.

Enfim, Tudo Sobre Lily Chou Chou é um filme que ilumina aquilo que está oculto numa sociedade aparentemente perfeita, apenas aparentemente.

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