Um homem vaga sem rumo por um shopping. Sua aparência não é saudável: roupas esfarrapadas, olhos azul-claros e lacrimejantes. Ele para perto das mesas, procurando comida. Duas mulheres de classe média o observam com desdém, comentando sua aparência. De repente, uma delas começa a se contorcer, em uma crise que parece uma convulsão epilética.
Esse é o início de Scanners, filme de David Cronenberg lançado em 1981, que assisti pela primeira vez recentemente.
Decidi entrar no filme sem conhecer o enredo, preservando o elemento surpresa. A única referência que tinha era a famosa cena da cabeça explodindo, mas não sabia nada sobre o contexto, a trama ou o significado de “scanners”.
O filme gira em torno dos “scanners”, indivíduos com habilidades telepáticas e telecinéticas extraordinárias. Esse conceito é familiar em obras como os livros de Stephen King, o mangá Akira de Katsuhiro Otomo, os quadrinhos dos X-Men e a série Stranger Things, dos irmãos Duffer.
Em Scanners, esses seres são resultado de experimentos científicos conduzidos pelo Dr. Paul Ruth (Patrick McGoohan), que desenvolveu um medicamento chamado “ephemeral”, administrado a gestantes para gerar crianças com poderes psíquicos. No entanto, devido a efeitos colaterais indesejados, a produção do “ephemeral” foi interrompida. Ainda assim, uma organização terrorista obtém acesso ao medicamento, planejando criar um exército de scanners para dominar o mundo. Eles continuam a prescrever o “ephemeral” em clínicas ligadas à organização, que, por sua vez, tem conexões com a ConSec, empresa que financiou as pesquisas do Dr. Ruth.
A trama, que remete a clichês de filmes de espionagem e conspiração típicos dos anos 80 — no contexto da Guerra Fria —, é personificada em dois irmãos scanners, filhos do Dr. Ruth: Cameron Vale (Stephen Lack), o homem do shopping, e Darrel Revok (Michael Ironside).
Cameron é o “scanner bom”, que desconhece seus poderes e vive como um mendigo. Já Darrel é o “scanner mau”, líder da organização que busca dominar o mundo e eliminar os scanners que se recusam a se aliar a ele.
Cronenberg utiliza as convenções do gênero para explorar sua obsessão como autor: revisitar o mito de Frankenstein à sua maneira.
Inspirado em Mary Shelley, ele aborda temas como a visceralidade, a corporalidade e uma visão crítica à ciência.
Sua abordagem é marcada por uma falta de pudor ao retratar deformidades grotescas e violência explícita. Além disso, o filme incorpora elementos típicos de Philip K. Dick, um dos autores favoritos de Cronenberg, como controle mental, organizações secretas e invasão de corpos — temas recorrentes na ficção científica americana das décadas de 50 a 80, muitas vezes com nuances anticomunistas, mas também críticas ao próprio sistema capitalista.
Não é surpresa que um diretor como Cronenberg tenha seu trabalho ressignificado e analisado sob diversas perspectivas.
Scanners pode ser lido como uma exploração da relação mente-corpo, do uso de drogas, do controle mental, da biopolítica, do terrorismo e da violência corporativa. No entanto, acredito que essa intelectualização seja mais acidental do que intencional. Cronenberg, muitas vezes, parece menos preocupado com complexidades teóricas e mais interessado em experimentos estéticos (e isso não é demérito) – o que não inibe a obra de uma certa afeição teórica de lastro literários mais ou menos evidentes.
Scanners é, acima de tudo, uma crítica visceral aos efeitos da ciência descontrolada, à la Mary Shelley, traduzida em uma imaginação bizarra e presciente de um futuro sombrio.