“A Mosca” (1986) é uma reinterpretação moderna e visceral do conto “The Fly”, escrito por George Langelaan e publicado pela primeira vez em 1957 na revista Playboy.
A história narra a tragédia de um cientista que acaba sofrendo uma fusão acidental com uma mosca, o que o transforma em uma criatura grotesca e monstruosa. A adaptação cinematográfica original de 1958, dirigida por Kurt Neumann, trouxe essa narrativa para as telas, mas o remake de Cronenberg, lançado em 1986, é mais focado nos elementos de horror físico e psicológico, além de aprofundar o tema da obsessão científica.
O filme de Cronenberg segue Seth Brundle (Jeff Goldblum), um cientista excêntrico que está trabalhando em uma revolucionária invenção de teletransporte. Ele acredita que sua tecnologia pode transformar a maneira como as pessoas viajam e transportam objetos. Porém, ao testar a máquina em si mesmo, Brundle não percebe que uma mosca entra na cabine com ele, resultando em uma fusão desastrosa entre os dois organismos. A princípio, Brundle sente-se revitalizado, mais forte e mais saudável, mas logo começa a perceber sinais alarmantes de transformação. Seu corpo, gradualmente, começa a se desintegrar e se transformar em uma mistura grotesca de humano e mosca. Seu comportamento também se torna mais errático e, à medida que a transformação avança, ele perde a capacidade de se controlar, tornando-se mais animalesco e irreconhecível.
Enquanto Brundle luta para encontrar uma solução para sua condição, ele mantém um relacionamento com Veronica (Geena Davis), uma jornalista que inicialmente o ajuda a divulgar suas pesquisas, mas que se vê cada vez mais afastada dele à medida que ele perde a humanidade. A progressão de sua transformação é marcada por cenas grotescas, como a perda de dedos e a queda de pedaços de pele, ilustrando o impacto físico e psicológico de sua degeneração.
O drama do filme acompanha a progressiva bestialização do personagem principal, e é justamente nossa capacidade de acompanhá-lo em seu sofrimento que Cronenberg torna explícito o fato de quem até o último momento, a criatura ainda conserva seu quinhão de humanidade.
Essa preservação da humanidade é fundamental, pois, sem ela, o impacto dramático do filme perderia sua efetividade — especialmente no final, quando vemos uma criatura tão grotesca que não se parece nem com uma mosca, nem com um homem.
Ser humano não é, necessariamente, parecer humano.
De acordo com Aristóteles, São Tomás de Aquino, Heidegger e Deleuze, a distinção entre o humano e o animal remete a um território ontológico.
Ser humano, afinal, é uma condição metafísica que vai muito além de sua mera tradução corporal.
Sob a monstruosidade da criatura, no amontoado de células e no corpo doente e decadente do personagem, há um sofrimento que não é apenas físico, mas existencial.
Por isso, a última cena de A Mosca não é catártica, mas profundamente triste.
Obviamente, não podemos cair no erro “cátaro” da dispensabilidade do corpo. Não é disto que estou falando. O corpo desempenha um papel fundamental.
Existe uma leitura que vê A Mosca como uma metáfora para a epidemia da AIDS. Segundo o próprio Cronenberg, o filme seria uma metáfora para o envelhecimento.
Tanto a AIDS quanto o envelhecimento envolvem uma transformação corpórea que resulta, igualmente, em uma transformação de identidade, por meio da violação da integridade corporal.
A integridade corporal é um componente importante na percepção de mundo.
Quando consideramos a metamorfose como uma deformação estrutural, devemos perceber que a estrutura também influencia o conteúdo, pois forma e conteúdo são aspectos indissociáveis, e a separação entre ambos não pode ocorrer sem efeitos colaterais.
O personagem é trágico porque, apesar de tudo, é humano — independentemente de seu grau de metamorfose, mutação ou deformidade.
Podemos afirmar que toda a vida humana é metamorfose: do óvulo ao feto, do bebê à criança, da adolescência à idade adulta e, então, o longo declínio para a velhice, a enfermidade e, finalmente, o cadáver em rápida decomposição. Apesar disso, não há distinção ontológica entre essas fases.
Sim, estou dizendo que A Mosca é um filme belo e melancólico filme sobre a condição ontológica do homem.