Meu divertimento no final do ano de 2019 estava em assistir os 50 episódios da excelente série Os Indomáveis (The Untamed, ou Chén Qíng Lìng), uma super-produção chinesa baseada num romance chamado Mo Dao Zu Shi (que, traduzindo, seria “O grão-mestre do cultivo demoníaco”), disponível no catalogo da Netflix.
A série segue as aventuras de dois “cultivadores” (uma espécie de sacerdote que pratica ritos mágicos e esgrima), que viajam para resolver uma série de mistérios de assassinatos e possessões.
A série já foi elogiada por elementos culturais tradicionais através de trajes requintados, instrumentos de música tradicional chinesa; além de, segundo o governo chinês, transmitir valores positivos, como coragem, cavalheirismo e amor pelo país (sim, meu caro conservador neófito, a China valoriza isso, assim como a URSS de Stalin chegou a valorizar heróis russos pré-revolucionários – não todos, obviamente).
Sua popularidade foi alta também entre os fãs do romance original por sua fidelidade e reverência a obra, além de promover a nível global uma onda de interesse em dramas chineses e, especialmente, ao gênero Wuxia (um gênero tanto literário quanto cinematográfico popular chinês, comparável ao Western americano, ao Chambara japonês ou as novelas de cavalaria da Europa).
Por mais que possamos adentrar em temas mais densos a partir dessas obras, não há como negar que a intelectualização da cultura pop, geralmente, nasce de uma reflexão tangencial – quase com uma forçação de barra.
No entanto, é nesses momentos, de guarda baixa, que muitas obras te surpreendem; e Os Indomáveis me surpreendeu, pois, justamente quando eu não estava esperando mais nada do que entretenimento exótico, a série me apresentou diversas discussões interessantes e complexas sobre a natureza do bem e do mal.
A série começa apresentado o ambiente, os personagens, os clãs, suas regras e desenha, com poucos contornos definidos, uma ameaça.
Até então, estamos num ambiente delineado pela guerra e pela magia, mas tudo indica que vemos é equilíbrio, onde os clãs se harmonizam num universo mágico, alegre e fecundo.
Todo esse universo casto e puro vai ficando cada vez mais impudico e maculado com o crescimento de um clã maligno e ambicioso chamado Wen.
O universo asseado e organizado que conhecemos vai se degradando lentamente em violência, brutalidade, desespero e massacres de inocentes (incluindo crianças).
A série mostra patriarcas e matriarcas dos clãs, que nos foram apresentados no começo como figuras divinas e intocáveis, sendo brutalmente assassinados e humilhados.
De repente, tudo se transforma em sangue, choro e uma demanda por vingança.
Muitas obras convencionais desenvolveriam a trama até aqui, e nos brindariam com uma vingança catártica, que expurgaria toda nossa raiva contida diante das piores atrocidades cometidas.
A grandiosidade da série é ultrapassar esse esquema. O clan Wen não é o mal. O mal, na série, é um recinto no coração de cada homem. A deposição do clan Wen cria um vácuo nesse recinto que, ao ser esvaziado, demanda preenchimento.
A série nos lança pertinentes dúvidas a respeito do poder exorcizador da vingança (e do poder em si), além de dar pistas do que vai preencher esse vácuo maligno deixado com a derrota do clan Wen.
As dúvidas são: até onde podemos atacar o mal com o mal? Quando a vingança se transforma em injustiça? Qual é a função da misericórdia? Onde paira os limites da licitude de uma vingança? É possível mergulhar no abismo do mal sem se sair manchado? Qual é o tamanho do poder sedutor das forças ocultas que dominam um coração amargurado pela experiência cruenta de uma guerra sem escrúpulos? É possível manipular forças ocultas para o bem?
Além disso, a série versa sobre amizade.
Os personagens Wei Wuxian (o sujeito de preto, interpretado por Xiao Zhan) e Lan Wangji (o sujeito de branco, interpretado PELO CANTOR DE K-POP Wang Yibo), mostrados e desenvolvidos como antagônicos e rivais, vão construindo laços fortes de companheirismo e fidelidade mútua.
Há também uma relação de complementaridade entre ambos que é muito bem estabelecida.
Wei Wuxian representa a curiosidade ladina como virtude e a impassividade como defeito. Lan Wangji representa a disciplina como virtude e a acinesia como defeito.
Em um sobra o que no outro falta.
Esse encaixe perfeito entre ambos orientou diversas discussões no Ocidente a respeito de uma possível modulação homoafetiva entre ambos os personagens que, para mim, soou como mera extrapolação de lacradores ocidentais que não entendem a dinâmica afetiva entre dois homens fora de um contexto pobremente erotizado.
Apesar de ambos terem personalidades antagônicas, o que os une é um forte senso de justiça e fidelidade ao bem que, muitas vezes, os obrigam a saltarem leis, regras e etiquetas estabelecidas para a manutenção da ordem.
Não é raro ambos terem querelas intensas contra seus próprios clãs – é preciso desobedecer a ordem para estabelecer a Ordem.
É o Idem Velle Idem Nolle de São Tomás de Aquino sendo esmiuçado em formato de Kung Fu Mágico.