Cowboy Bebop – Da colagem a ressignificação

Tripulação da nave Bebop

História e conceito

A trama de Cowboy Bebop se desenrola no ano de 2071, em um futuro que podemos caracterizar como pós-civilizacional.

A humanidade, após alcançar seu ápice civilizacional ao colonizar todo o Sistema Solar e desenvolver os “portais estelares”, capazes de realizar deslocamentos de milhões de anos-luz, viu-se compelida a regredir a um estágio nômade devido à explosão do portal estelar lunar.

Esse evento resultou na dispersão de destroços rochosos na órbita terrestre, tornando a Terra praticamente inabitável e obrigando a população a abandonar o planeta para buscar refúgio no espaço.

Nesse contexto, a série desenvolve seus conceitos de “fragmentação” e “dispersão”, os quais se refletem tanto nos personagens quanto no próprio conceito musical jazzístico da obra.

A fragmentação da Lua se torna quase uma metáfora para a fragmentação da humanidade e dos indivíduos, que se dispersam pelo espaço enquanto tentam manter conexões e alguma ordem.

A “busca” emerge como um padrão na experiência humana.

Neste cenário, acompanhamos Spike, Jet, Faye, Ed e Ein – caçadores de recompensa espaciais.

No universo retratado, são os caçadores de recompensa que, por meio de seu patrulhamento, sustentam uma espécie de ordem entre os diversos fragmentos da humanidade espalhados pelo universo. Não movidos por ideais elevados de justiça e ordem, mas sim pela necessidade básica de sobrevivência (e talvez para preencher o tempo).

Jazz


Cada episódio é uma “session” (sessão), remetendo ao universo do
Jazz (estilo de música que compõe majoritarimente a triha deste desenho).

Assim como o Jazz, Cowboy Bebop se define pela liberdade do improviso (fruto de fragmentação), mas orbita um “leitmotiv” (uma melodia, ou conceito principal – que no caso é a busca ou fuga do passado).

Trilha sonora de Cowboy Bebop, composta por Yoko Kanno e executada pela SEATBELTS:
 

As “sessões” de Cowboy Bebop são de natureza episódica. Embora a série, no geral, tenha uma linearidade bem definida (ou seja, começo, meio e fim), cada episódio pode ser visto de forma separada (e até aleatória), sem muito prejuizo da experiência.

Isso é um trunfo hoje em dia.

De forma muito arrogante, criticamos as séries que tinham “o caso da semana” e, sem querer, criamos um monstro muito maior e mais repugnante – a série cheia de “fillers” onde a função do episódio nunca é conclusiva, mas sempre um “teaser” do próximo.

Personagens

Clique nos personagens abaixo para abrir o texto.

Cowboy Bebop como Remix e Remix como gênero

O “remix” é um reflexo de movimentos artísticos em sintonia com o desenvolvimento do ambiente tecnológico. Eles se desenvolvem com a facilitação da reprodutibilidade dos produtos culturais, pelo desenvolvimento das mídias e pela a super exposição global facilitada pela distribuição e pela economia globalizada – que permite o intercâmbio de mercadorias entre países de culturas muitos distintas.

Além dos bens de consumo tradicionais, entre essas mercadorias podemos encontrar os produtos culturais e de entretenimento, incluindo aqui animações japonesas, filmes de cowboy, discos de jazz e livros de ficção-científica.

Esses exemplos que dei acima não foram aleatórios. A junção (ou remix) pouco intuitiva de mangá, faroeste, ficção-científica e Jazz deu em 1998 uma obra única: Cowboy Bebop.

A obra consagrada de Shinichiro Watanabe misturou, sampleou, redefiniu e re-significou tantas coisas que criou um gênero próprio, uma identidade única – que talvez só encontre paralelo em Kill Bill (2003) de Quentin Tarantino.

Essa identidade única de Cowboy Bebop surgiu da mistura de animação japonesa, blaxpoitaion, filmes de Kung Fu, Western Spaghetti, filmes noir, filmes de espionagem, filmes de máfia e literatura de ficção-científica (de space opera a cyberpunk).

O remix em Cowboy Bebop é mais que um mero exercício de colagem, ele é um exercício de resignificação, “um ponto de inflexão entre o imaginário dos produtos midiáticos e a sociedade japonesa, em uma tentativa de entender e explorar não só o Japão atual, mas o contexto mundial globalizado, entrecruzado e miscigenado referencialmente” (trecho de “O remix midiático das séries de televisão Cowboy Bebop e Samurai Champloo” de Roberta Regalcce de Almeida, 2010)

Cowboy Bebop - Western

A síntese dialética entre passado e futuro

A mistura de Watanabe em Cowboy Bebop é particularmente significativa, considerando que ele é um autor japonês nascido no pós-guerra.

Nessa época, o Japão transitava de um país destruído pela guerra para um contexto industrial-tecnológico pós-moderno em uma velocidade impressionante.

As rupturas intergeracionais costumam ser dramáticas em todos os países. Num contexto em que o orgulho nacional ferido está ligado a dois ataques nucleares, o que normalmente seria dramático torna-se traumático.

O Japão, antes um algoz aliado do Nazismo e que perpetuou um dos mais brutais crimes da humanidade, como o Massacre de Nanquim na China, transforma-se em vítima.

Anteriormente um dos países mais pobres e tecnologicamente atrasados, o Japão, pressionado pela significância econômica global, torna-se uma das economias mais prósperas do mundo, mudando seu aspecto de “país rural” para “centro corporativo”.

Como nenhuma mudança é totalizante, o país torna-se uma profunda expressão da tensão dialética de extremos opostos.

No Japão, o jovem, que já enfrenta crises de identidade e personalidade naturalmente, cresce num ambiente que reflete uma similar indefinição.

Na sua tensão dialética, o Japão expressa em si uma síntese de “extremo passado” e “extremo futuro“.

Cowboy Bebop representa exatamente isso – uma indefinição do espaço e do tempo.

Não é apenas uma mistura de diversos produtos culturais distintos; é uma mistura de passado e futuro, tradição e modernidade. Isso é exemplificado no próprio cenário de fundo de Cowboy Bebop, o ano de 2071, onde a humanidade vaga pelo espaço sideral em naves espaciais e coloniza outros planetas, mas, em solo, todos os planetas colonizados parecem com o velho oeste americano do século XIX.

Outro exemplo da mistura entre passado e futuro em Cowboy Bebop aparece logo no primeiro episódio, onde Spike (o personagem principal) pede a ajuda de um Xamã (Laughing Bull) para procurar Asimov Solensan, um traficante de drogas. Num ambiente onde naves espaciais rasgam o céu, portais hiperespaciais existem e o sistema solar é completamente mapeado, Spike utiliza como “tecnologia de busca” um místico que apenas utiliza areia entre os dedos como método de rastreio.

A mistura de futuro e passado em Cowboy Bebop acaba sendo reflexo da própria paisagem de cidades como Tokyo, Quioto e Hiroshima – cidades que borraram a linha entre o nacional e o internacional, o velho e o novo – e onde templos shintôs e prédios corporativos disputam a atenção nas paisagens.

Essa tensão em si cria um significado. A justaposição de ideias (às vezes opostas) é constitutiva de sua própria forma escrita tradicional: o ideograma.

O ideograma por si só já é um conceito complexo: uma quantidade aparentemente ilimitada de hieróglifos que, reunidos, expressam uma infinidade de conceitos e ideias reconhecíveis.

Vale lembrar que, paralelamente a isso, os japoneses dominam uma série de alfabetos fonéticos europeizados, como o Manyõ kana, hiragana, entre outros, muitas vezes empregando as duas formas ao mesmo tempo.

Para o cineasta russo-soviético Sergein Eisenstein, o cinema é a “arte da montagem”, é a “justaposição de planos” para criar estímulos, pensamentos, sentimentos, ideias, conceitos, etc. O cinema, para Eisenstein, está mais próximo do ideograma japonês do que da fotografia.

Simplificaríamos muito a cultura japonesa se retomássemos a ideia do “remix” do início do texto e a aplicássemos como ilustração do conceito de ideograma. Podemos, no entanto, utilizar essa ideia de justaposição e resignificação para explicar esteticamente Cowboy Bebop. Estamos amparados nessa ideia ao trazer um cineasta russo que incorporou a escrita japonesa no seu conceito de decupagem.

O que mais podemos dizer de um desenho que mostra um bar em Júpiter que toca Blues?

Se You Space Cowboy...
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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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Jet - Cowboy Bebop

Jet

De todos os personagens do Bebop, Jet Black é o mais forte em sua mentalidade, graças ao seu forte código moral e senso de justiça. Mesmo como caçador de recompensas, sua postura parece ganhar contornos de uma ética militar. Concluir uma missão, para ele, parece estar acima de tudo.

Ele também é o mais velho da tripulação, com suas cicatrizes mais literalmente visíveis do que os outros membros.

Antes dos eventos da série, ele era oficial da Polícia do Sistema Inter-Solar, ou ISSP, e tinha um relacionamento de longa data com uma mulher chamada Alisa.

Assim como Spike, seu passado é marcado por traumas emocionais e físicos. O trauma emocional vem de Alisa deixá-lo repentinamente. O trauma físico vem dele perder seu braço esquerdo enquanto investigava a corrupção relacionada à máfia na força policial. Ambas as cicatrizes são exploradas em sentidos muito literais e simbólicos: antes de partir, Alisa deixa um relógio para ele (como forma de sinalizar uma ancoragem dele no passado) e Jet obtém um braço mecânico em vez de um recém-regenerado, proclamando em seu corpo os sinais de traição.

Spike - Cowboy Bebop

Spike

Spike é o personagem principal de Cowboy Bebop. Ele, assim como todo personagem ou cenário em Cowboy Bebop, é a corporificação de uma mistura. Nele podemos ver uma fusão cinica de Hans Solo (Star Wars), Yojimbo (de Yojimbo: O Guarda Costas e Sanjuro, de Akira Kurosawa), ‘Joe’ (persoangem de Clint Eastwood em “Um Punhado de Dólares” de Sergio Leone) e Bruce Lee (dispensa apresentações) e diversas outras referências.

Ele é um caçador de recompensa de fala mansa, ex-executor renegado que trabalhava com a Red Dragon Syndicate (uma espécie de mistura de máfia siciliana e Yakuza) e um homem que, no passado, tentou fugir com uma mulher por quem se apaixonou, chamada Julia, mas acabou se envolvendo em uma armadilha (planejada por seu ex-companheiro e atual rival, Vicious) e acabou quase perdendo a vida em um atentado.

Este momento em sua vida o deixou com cicatrizes tanto físicas quanto emocionais: ele perde o olho direito durante uma operação no Sindicato, que é substituído por um artificial.

Essa ligação com o passado, representado pela prótese, é tanto física e simbólica. De uma forma alegórica e literal, ele diz que um de seus olhos vê o passado e o outro vê o presente.

Desde então, ele vaga sem rumo ou propósito pelo espaço, com grande sentimento de tédio e indiferença. Caçar criminosos para ele é mais um passa-tempo do que qualquer outra coisa.

Faye - Cowboy Bebop

Faye

Faye Valentine se destaca do resto da tripulação da Bebop pelo fato de ser a única que está buscando ativamente sua vida anterior, em vez de fugir dela. Antes de conhecer a tripulação, ela não tem memória de seu passado, apenas carrega consigo uma dívida financeira e uma desconfiança cínica dos outros. Por ter sido aproveitada por vigaristas, ela acabou fugindo e levando uma vida criminosa, o que a torna uma recompensa para a equipe do Bebop. No entanto, ela acaba se unindo a eles.

De todos os personagens, ela é a mais bem construída e a que tem a história mais dramática.

Devido a um acidente de nave espacial que aconteceu a mais de cinquenta anos antes dos eventos da série (e que matou toda sua família), ela foi colocada em um sono criogênico até que a aplicação de alguns remédios pudessem recuperar o suficiente seus ferimentos. No entanto, sua memória foi perdida nesse tempo – e a busca pelo passado se torna para ela uma obsessão.

Ao longo dos episódios, Faye vai descobrindo que seu planeta (a Terra), sua casa, sua infância, sua família e seu tempo não existem mais.

Faye acorda, mas completamente desorientada, sem saber a resposta de perguntas basilares como “quem eu sou?”, “onde eu estou?” e “de onde eu vim?“. A busca pelo passado, para ela, é também uma busca pela identidade.

Ed e Ein - Cowboy Bebop

Ed e Ein

Ed e Ein são os membros mais jovens e mais improváveis do grupo. Ein é um Corgi geneticamente modificado e Ed uma garotinha hacker. A presença deles atua como um contrapeso ao resto da melancólica tripulação da Bebop.

A inocência infantil e a juventude de Ed fazem dela a única personagem que está realmente vivendo no presente, em vez de ser oprimida pelo passado. Claro, ela ainda tem sua bagagem emocional – seu pai praticamente a abandonou quando ela era pequena. Mas ela não está fugindo de seu passado. Ela está simplesmente vivendo sua própria vida, animada para ver onde suas aventuras a levarão e quem ela encontrará.

Ed sai do programa praticamente da mesma maneira que chegou, em busca de aventura e fazendo suas próprias escolhas na vida.