Uma coisa interessante do filme Nosferatu, de Murnau, é que ele criou uma identidade tão própria que é até possível considerá-lo uma obra independente, distinta até mesmo da fonte literária em que se baseia.
Como todos sabem, o filme é inspirado em Drácula, de Bram Stoker.
No entanto, o culto a Nosferatu não deriva necessariamente apenas da obra original e o filme, muito menos, parece pertencer à mesma categoria de “filmes sobre Drácula” que vemos por ai.
Há diversos filmes sobre Drácula, e há Nosferatu.
Nosferatu realça e, eu diria, até complementa a obra de Bram Stoker.
A estética expressionista do filme revela de maneira explícita os temas subjacentes no livro: o anti-iluminismo, a crítica à soberba científica e ao racionalismo, a ode à sensibilidade medieval e à religião, a pulsão erótica vinculada à pulsão de morte, o magnetismo sexual do repulsivo, do bestial e até mesmo do demoníaco, além da atração e oposição mútua entre o masculino e o feminino.
É possível ter um filme favorito sobre Drácula que não seja Nosferatu (no meu caso, é a adaptação de Coppola de 1992) e, ainda assim, preservar Nosferatu no santuário intocado de uma obra-prima definitiva – que não se mistura nem se compara com as demais.
Este filme consolidou sua própria matriz, que foi revisitada de forma brilhante em 1979 por Werner Herzog e, mais recentemente, em 2024, por Robert Eggers.
Eggers mais uma vez fez um excelente trabalho, prestando uma bela homenagem a esse clássico, fazendo o que ele sabe fazer de melhor: manipulação de luz, sombra e som.
Eu saí do cinema sem saber identificar claramente em quais cenas havia violência explícita e em quais havia apenas uma forte sugestão dela.
O filme é completamente dessaturado e intencionalmente mal iluminado, o que nos coloca na pele dos personagens, que parecem sufocados por uma sombra que cresce a cada momento.
A alternância entre o sugestivo e o manifesto é algo que Eggers domina. Esconder o horror nas sombras é uma habilidade que ele executa com maestria.
A sonoplastia também desempenha um papel crucial, imergindo o espectador em cada cena. Ela se conecta à atmosfera do filme, às sombras, e até parece complementar diálogos que são ao mesmo tempo artificialmente poéticos e, de uma forma estranha, naturais – muitas vezes enfatizando aquilo que o próprio personagem é.
O Conde Orlok, por exemplo, fala com extrema dificuldade, o que lhe confere uma beleza quase indescritível (acentuada pela sua aparência medonha).
Ele convence tanto como uma criatura repugnante quanto como um sedutor.
Sua voz sugere dor, sofrimento, cansaço, mas, ao mesmo tempo, é poderosa e máscula. Essa masculinidade não obscurece sua sensibilidade poética, sua obsessão e sua dor, que se expandem em metáforas épicas – como quando ele se compara aos ventos selvagens do mar, revelando uma mistura coerente de fidalguia aristocrática e um romantismo baroniano. Que personagem!
Enfim, assistam.