A primeira hora do filme é puro “misery porn”.

Este termo é usado de forma pejorativa por alguns críticos para designar um filme que se engaja em mostrar uma cadeia inacreditável de tragédias.

Começa num velório, vai para um terrível acidente de carro, continua pela exposição de um histórico envolvendo depressão, ansiedade e suicídio e, para completar, há até a menção de um “sonambulismo potencialmente homicida”, sem deixar de lado, obviamente, típicos dramas familiares, fragilidade emocional e pesadelos.

Se não fosse a condução habilidosa da direção e do SENSACIONAL desempenho dos atores, o filme teria se descarrilhado.

Miséria humana é terrível, miséria DEMAIS chega a ser cômico. Isso deveria ser chamado de regra de São Lourenço, que, diz a lenda, no meio do seu martírio na grelha romana, já estava fazendo piadas sobre “carne mal passada”, tirando risos de canto de boca dos soldados.

O “misery porn” geralmente é mal visto pois as pessoas entendem como manipulação barata.

No entanto, não estou nem ai. Se o filme me manipular, mérito do filme.

Reclamar de manipulação emocional num filme de terror soa uma frescura. Sempre fui contra quem reclama de “jump scare” – parece raivinha de quem vive caindo neles, coisa de quem não estudou na Universidade Slasher dos anos 80.

No entanto, caberia aqui analisar se o baque da primeira parte do filme se conecta com a segunda, pois, até agora, a meu ver, me parecem 2 filmes diferentes. Talvez, digerindo melhor o filme, eu amadureça melhor essa visão.

Na segunda parte, mais interessante pra mim e menos interessante para o resto do universo (pelo que andei lendo), o filme vai se modulando num terror sobrenatural – com algumas piscadelas para o folk horror, com muitas menções a seitas e uma entidade chamada de Paimon.

Não sei se Paimon existe, mas ele está catalogado no grimório de Papa Honório III. Ele faz parte do imaginário folclórico e demonológico medieval.

Para Padre Quevedo, NON ECZISTE, mas essa entidade pairou no imaginário de muitos aldeões e curas da Idade Média, aqueles mais suscetíveis a interpretações místicas de fenômenos estranhos – tanto que um Papa se sentiu obrigado a descrevê-lo.

Paimon, dizem, pode fazer diversas coisas: ensinar ciências ocultas – conceder dignidade e senhorio as pessoas que o invoca e fazer uma conexão com os mortos. Tudo isso está no filme.

Sua invocação é feita por um culto secreto de peladões feios e a transmissão se dá por linhas geracionais (por isso, o filme se chama Hereditário). Ele se hospeda preferencialmente em corpos masculinos.

O tom mais místico caminha por linhas mais próximas de James Wan de Invocação do Mal, com um excelente domínio do mise-en-scène, trabalhando bastante a penumbra, as sombras e ações acontecendo no fundo.

Filmes desse tipo são bem-sucedidos quando você se pega tenso olhando cada canto da tela pra ver se tem alguma coisa.

Engraçado pensar nisso, mas existe uma modelagem meio “nostálgica” do medo infantil do “monstro atrás do armário” ou do “monstro debaixo da cama”.

Enfim. Um pouco misery porn, um pouco James Wan e um pouco folk. Gostei. O terror tá numa fase massa na minha opinião.

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