Cthulhu contra o Mundo Moderno

“Os homens aguardam que este mundo sem saída seja incendiado por uma totalidade que eles próprios constituem e sobrem a qual nada podem.”

Dialética do Esclarecimento – Adorno e Horkheimer

Episódio do podcast:

Cthulhu

A literatura fantástica é muito frequentemente descrita e nomeada como uma das maiores forjadoras de mitos do mundo moderno – seja reinterpretando mitos clássicos, seja criando mitos para a era da racionalidade técnica.

Poucos autores, no entanto, buscaram fundamentar seu cosmo ficcional em um relato mítico coerente e completo como H.P. Lovecraft, criando não apenas histórias dispersas, mas correlacionadas a um mesmo mito cosmogônico.

No universo de Lovecraft, a humanidade está numa espécie de letargia do mundo desperto. Como no mito da caverna de Platão, enxergamos apenas sombras da verdade. Apenas com estágios de consciência alterados ou através dos sonhos, podemos vislumbrar o que está além da nossa percepção – a verdade na sua totalidade.

Através de várias pistas espalhadas por diversos contos e personagens, podemos moldar esse universo num panteão maldito, incomensurável e inominável de seres místicos, identificados como deuses ancestrais – que são refratários a qualquer forma de entendimento.

Podemos ver em Lovecraft uma espécie de resgate acidental da ideia de Deus, tal como era concebida com mais clareza nos ditames do Velho Testamento bíblico, ou, talvez, no mundo medieval católico. Algo onipotente, ordenador e inconcebível.

A entidade lovecraftiniana que mais se assemelha ao inigualável deus bíblico é Azathoth. A única diferença é que Azathoth é um deus que não interage e não é guiado por nenhum aspecto de vontade ou instinto, ele apenas reage.

Dentre os deuses criados por Lovecraft, o mais famoso deles, sem dúvidas, é Cthulhu, um a criatura descrita sempre em termos superlativos e impressionantes, oriunda de outro universo, cujo corpo é composto por uma cabeça cefalópode (semelhante a um polvo), com partes típicas de um dragão e, também, vagamente humanoide.

Cthulhu

A cabeça cefalópode remete ao que biologicamente conhecemos como um ser de uma classe animal aquática muito evoluída e muito mais antiga que o homem. O dragão é um dos mais irreais e maravilhosos seres mítico da nossa imaginação. Seu aspecto vagamente humanoide parece concluir uma síntese dialética dessa mistura.

Cthulhu parece ser um arremedo de símbolos que parecem zombar das limitações de nosso universo.

Este ser está exilado na Terra há muitos milhões de anos e interfere na história do planeta desde a sua aparição.

Cthulhu também representa uma síntese imagética tanto das convulsões do momento histórico vivido por Lovecraft, quanto da profunda recusa do autor com a ordem racional estabelecida no mundo moderno.

“A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é a incapacidade da mente humana em correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinito, e não está escrito pela Providência que devemos viajar longe. As ciências, cada uma progredindo em sua própria direção, têm até agora nos causado pouco dano; mas um dia a junção do conhecimento dissociado abrirá visões tão terríveis da realidade e de nossa apavorante situação nela, que provavelmente ficaremos loucos por causa dessa revelação ou fugiremos dessa luz mortal rumo à paz e à segurança de uma nova Idade das Trevas.”

O Chamado de Cthulhu – H.P. Lovecraft

O “inconcebível” afronta o homem que quer dominar tudo pela razão. A chamada ao horror e ao fascínio, do vislumbre de um mundo que não está limitado pela técnica científica, é um resgate quase religioso ao panteão do mistério.

O mistério, como diz Lovecraft em uma de suas cartas, deve ser contemplado sublimando questões como bem e mal, amor e ódio, tempo, espaço e dimensão – coisas que, para ele, são contingências desprezíveis e temporárias da humanidade (nisso, vemos uma clara influência filosófica de Nietzsche).

Lovecraft ainda usa o seu mito cosmogônico para pautar crítica dos a um mundo administrado pelo aspecto industrial e urbano moderno.

Impossível não correlacionar isso a sua postura arredia, hipersensível e dada à morbidez – que rejeitava a alienação, euforia, o vai-e-vem de pessoas e o falatório irritante de cidades como Nova York, além da sua clara predileção pelo mundo mais provinciano, quieto, rural, simples e pacífico – algo que podemos atestar, novamente, através das suas milhares de cartas.

Lovecraft vinha de uma linhagem de proprietários decadentes que cultuavam a pureza idealizada do meio rural, que seria sadio e puro em comparação à corrupção da cidade. Cumpre notar que Providence, cidade onde viveu Lovecraft, era uma das mais antigas cidades da Nova Inglaterra.

As grandes metrópoles eram palco de velocidade e desfragmentação e sinalizavam a falência das formas orgânicas de compreender e narrar os acontecimentos históricos.

Podemos aprofundar ainda mais no biografismo anedótico e situar a cosmogonia de Lovecraft na sua infância perturbada por pesadelos – entendidas como convulsões orgânicas do medo manifestadas durante o sono. Algo que, para Lovecraft, era muito mais real do que qualquer outra coisa que ele tenha experimentado no mundo desperto.

Cthulhu, que é um adormecido conglomerado orgânico humano-polvo-dragão, parece ser visualmente um manifesto de antítese ao mecânico e artificial, um suspiro nostálgico de dimensões titânicas e indiferente as nossas bugigangas tecnológicas, fruto da nossa pretensiosa inteligência.

Lovecraft assume aqui sua posição de vanguarda anti-vanguarda se opondo radicalmente ao seu próprio tempo histórico – típico de um reacionário brilhante – um dos inúmeros que constituem a história da literatura mundial.

Referências e indicações bibliográficas

O chamado de Cthulhu e outros contos – H.P. Lovecraft

“O chamado de Cthulhu”, escrito em 1926 por Lovecraft, delineou grande parte daquilo que ficaria conhecido como os Mitos de Cthulhu, denominação sob a qual parte de sua obra foi reunida após sua morte. Primorosa por seu detalhamento, revolucionária no próprio formato de conto, esta história é um ponto seminal da sua produção. Este volume abarca histórias dos Mitos de Cthulhu e outras preciosidades da escrita lovecraftiana. “Nyarlathotep”, “A cidade sem nome”, “A música de Erich Zann”, “Herbert West – Reanimador”, “Os ratos nas paredes”, “Ar frio”, “O modelo de Pickman”, “A cor vinda do espaço”, “A história do Necronomicon” e “O horror de Dunwich” completam esta edição.

Funções do Mito na Obra de H.P. Lovecraft – Caio Alexandre Bezarias

Pesquisa quem tem como função investigar a importância do mito na obra de H.P. Lovecraft, revelando o sentido das obras máximas do escritor, seu valor como uma intensa e dialética crítica ao mundo industrial e urbano moderno.

A Totalidade Pelo Horror – Caio Alexandre Bezarias

A totalidade pelo horror é um livro munido da teoria crítica da Escola de Frankfurt, os estudos sobre o mito de Joseph Campbell, Mircea Eliade e Jean Pierre Vernant, as reflexões de Fredric Jameson sobre a utopia, entre outros – sobre Howard Phillips Lovecraft, um dos artífices da literatura fantástica moderna. A despeito de sua cada vez maior popularidade e penetração entre os leitores e estudiosos brasileiros desse gênero tão mal compreendido, e de ser publicado no país pelo menos desde os anos 40, estudos feitos em língua portuguesa sobre sua obra, que se afastassem da exaltação juvenil do fã bem como da crítica preconceituosa de parte da academia, eram, até há bem poucos anos, praticamente inexistentes. O presente livro é uma contribuição brasileira, feita por um pesquisador devotado ao autor e ao gênero, mas bastante atento e crítico, a uma maior compreensão do ciclo de Cthulhu e de seu significado como representação exótica e alucinada das contradições e horrores que o monstro urbano-industrial gerou e gera.

Horror Sobrenatural na Literatura – H.P. Lovecraft

Neste ensaio o mestre do terror H.P. Lovecraft discursa sobre o gênero e rastreia as suas origens, os artífices da construção narrativa e investiga suas próprias obras, proporcionando ao leitor um verdadeiro tratado a respeito do terror, escrito por um de seus maiores mestres e inventor contemporâneo.

H.P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida: Contra o mundo, contra a vida – Michel Houllebeccq

Buscando desvendar o gênio de um dos maiores autores norte-americanos do século XX, o premiado escritor francês Michel Houellebecq traça um percurso afetivo pela vida e pela produção literária de H.P. Lovecraft. Houellebecq cria uma espécie de “romance não ficcionalizado”, partilhando com este personagem a visão de mundo excepcionalmente sombria que levou ele mesmo a ser conhecido como o enfant terrible da literatura francesa contemporânea. Com uma introdução lúcida e pungente do mestre Stephen King, este livro é leitura fundamental para os interessados em Lovecraft e Houellebecq, e também para aqueles que querem conhecer a fundo o gênero horror. Mas é indispensável, principalmente, para os que, nas noites insones, ousam ouvir as vozes que sussurram de dentro do travesseiro.

Dialética do Esclarecimento – Theodor Adorno e Max Horkheimer

Considerado como a pedra angular das ideias que tiveram por berço a Escola de Frankfurt, esse livro é uma crítica filosófica e psicológica de amplo espectro das categorias ocidentais da razão e da natureza, de Homero a Nietzsche.

Outras indicações:

Bunker do Dio (canal no Youtube)

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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